11.30.2009

E quem não salta...
















Está a ser divulgada a lista de concertos dos Them Crooked Vultures, com início na Europa e que será retomada no ano seguinte do outro lado do mundo. De Portugal (Espanha ou França), nem sinal. Apetece pegar nos nossos promotores de concertos, atá-los num saco, e mandá-los à merda.

O meu bloomsday






















She wanted only to be free of him and to satisfy the common enough human wish to move on and try something else. [p. 127]

Permitam-me a imodéstia. Não tenho a pretensão de ocupar um minuto que seja a cadeira do sr. Harold Bloom. Longe disso. Mas deve haver por aí muito escritor cuja obra completa não atinge em nenhum momento o poder de síntese desta frase, junto com a sua capacidade de ir fundo na natureza humana. Uma frase recta, implacável, sem vírgulas. A Philip Roth bastaram as 140 páginas de uma novela, The Humbling, que em minha opinião não está sequer entre os melhores livros que li dele. Quando alguém afirmou que Deus se encontrava nos pormenores, devia estar a pensar sim no génio dos homens.

11.27.2009

Abutres e bandoleiros





















Privado de participar na reunião dos Led Zeppelin, e por motivos que me parecem legítimos (afinal havia o filho de John Bonham, Jason, ali pronto a tocar as malhas todas), Dave Grohl agarra-se à incumbência de dinamitar o som dos Them Crooked Vultures, e fá-lo sem regatear unhas ou dentes. A sua prestação é o que se costuma apelidar de espectáculo dentro do próprio. Para início de discussão, é favor ouvirem-no no tema Bandoliers.

[E para desfazer dúvidas e perplexidades, o som que predomina no disco tem o cunho late QOTSA. Nem Zeppelin, nem Foo Fighters, conseguem sobrepor-se, e isto era o esperado.]

Johnson & Johnson






















Não me espantaria se viesse a encontrar numa entrevista de Damon Riddick (o homem artisticamente conhecido por Dâm-Funk) a explicação para a existência de dois discos de temperatura emocional um pouco diferente – além do facto de um deles ser todo instrumental – na edição CD de Toeachizown (to-each-his-own), justificada na distinção entre música sobre a "noite anterior" e música para a "manhã seguinte". A melhor música não fala de outra coisa. Estamos perante a evidência dos sons que em nós deslizam como mãos impregnadas de óleo pelas costas dessa outra pessoa; como o carro nos sonhos que avança de Verão por uma avenida vazia e iluminada; ou como as melhores produções da dupla Quincy Jones/Michael Jackson que põem os mais aptos a mexer-se pelas pistas de dança como se estas tivessem acabado de ser enceradas (I Can't Help It, sempre). Jackson serve o pretexto de chamar a atenção sobre uma ideia de génio – tão óbvia e simples – que foi colocar o realizador Pedro Costa a falar de música. A reportagem é de João Bonifácio, pode ler-se hoje no Ípsilon, e rápida vista de olhos deu para perceber que há ali material suculento. Pelo que venho ouvindo Dâm-Funk é homem para Costa. Do pouco que li Pedro Costa é bem capaz de ser homem para Dâm-Funk. Amigos-amigos, óleos à parte.

11.26.2009

The sky is ours


























Levitar ou não levitar? Apesar da violência do tombo, levitar sempre. Leram bem. Sempre.

11.25.2009

Eyes wide shut


























Evan Rachel Wood fotografada por... e o que é que isso interessa? Isto é o tipo de post que leva algumas mulheres a ter receio de mim. Porque furtivo olho-as por vezes de tão perto e com tal intensidade que quase chego a cegar.

[clicar na imagem para aumentar a ilusão]

11.24.2009

Sempre a abrir





















Orelhas coladas ao novo Gazua, Música Pirata, trazido pelo estafeta antes do almoço. Roquenrole lisboeta de atitude "fight the power", a fazer lembrar Xutos e Pontapés dos primórdios: os Xutos da altura em que os ouvia. Apetece aplicar o trocadilho fácil, embora certeiro, e dizer que a música dos Gazua é sempre a abrir. Juntando o aviso. A embalagem que envolve o CD é bastante original, e no impulso de chegar rapidamente ao disco podemos produzir danos irreparáveis. A abertura dispensa a gazua, mas exige cabeça. Não se precipitem.

Podia morrer pela boca todos os dias





















Nada me move contra os White Stripes ou Jon Spencer Blues Explosion, mas penso que nenhum disco saído do nicho revivalista blues-rock, que tem décadas, me entusiasmou na medida de Rubber Factory, dos Black Keys.

Está encontrado esse outro disco, agora que tudo me move a favor dos White Stripes.

11.23.2009

Cream fraîche





















Já comeu o seu Clássico hoje? Eu já.

Marlenes







Falta dizer que vi 'Ne Change Rien' na manhã de domingo numa sala vazia




















Apenas eu e a tela. Ela somente, e eu. Proeza menor do retrato de Pedro Costa é a circunstância de nos enamorarmos por Jeanne Balibar. Basta pensar na última vez que um rosto se nos manifestara com tal esplendor; que uma voz nos encantara com o pudor da sua exposição. Costa é alguém que marcha claramente na direcção oposta ao caminhar do mundo, daí que a vitalidade do seu cinema nada tenha de ilusória. São filmes também habitados por fantasmas, mas que se sentem com o corpo e no corpo. Objectos que requerem atenção, disponibilidade para ver os pequenos milagres: um gesto revelador, um rosto que se ilumina ou fecha, o sortilégio particular da natureza humana. Ne Change Rien resulta no retrato de Jeanne Balibar (com banda) – a mulher, a cantora, a actriz – no trabalho, dando por outro lado a sentir a presença do cinema dos vivos e dos mortos. A voz de Godard, samplada, que ouvimos dizer "não mudes nada, para que tudo seja diferente". O gato preto de Tourneur que atravessa um dos quadros. Os planos agachados a fazer lembrar o cinema clássico japonês. A espectralidade das formas sugerida em imagens que reenviam para os filmes de Andy Warhol. A canção Johnny Guitar que evoca Nick Ray muito distante da citação. Até a transferência de elementos que associamos com a obra de Pedro Costa, para cenários onde nunca tinham sido vistos antes: por exemplo, o beco onde observamos o pianista que acompanha os ensaios da opereta de Offenbach, sentimo-lo como parte dos corredores labirínticos do bairro das Fontainhas. É como se os filmes de Pedro Costa contivessem o cinema e algo mais que isso. Um mundo que ele dá a ver a partir da sua forma muito própria de olhar o mundo em volta, contaminada pelo desejo de um mundo ideal. Suspenso. Luz, sombras, negro, músicos, canções, a intimidade que a câmara se recusa devassar. Escolhidos os enquadramentos, o plano fixa-se e dura o que tiver de durar. É preciso muito peneirar para dar com o ouro, mas ajuda ter capacidade para sentir onde ele pode ser encontrado. Aquilo que se afigura como pequena proeza é também resultado do esforço suplementar de alguém semelhante a nós. A fixidez de um olhar que permite observar (ampliando) as discretas mudanças que fazem de cada instante um momento particular. Uma suspensão ou um pequeno êxtase.

Prognósticos ('The Humbling')

He felt the strenght in her well-muscled arms, he fumbled with her heavy breasts, he cupped her hard behind in his hands and drew her toward him so that they kissed again. Then he led her to the sofa in the living room, where, blushing furiously as he watched her, she undid her jeans and was with a man for the first time since college. He was with a lesbian for the first time in his life. [pag. 55]

















"My life has been very precarious over the past few years. I don't feel the strenght that it would take having my hopes dashed. I've had my share of marital misery, and before that my share of breakups with women. It's always painful, it's always harsh, and I don't want to court it at this stage of life." [pág. 62]

11.20.2009

Sinal vermelho






















Os The White Stripes escolheram desde a origem o jogo cromático que melhor traduz o carácter iminentemente explosivo da sua música. Mesmo nos momentos de acalmia pressentimos a descarga eléctrica como inevitável. É interessante de notar que sendo o duo originário da América profunda, e o som deles se fixar essencialmente no blues e no garage rock, existir em contínuo uma contaminação da sonoridade de bandas paradigmáticas do outro lado do Atlântico, como os Beatles, os Rolling Stones, os Led Zeppelin, os Sex Pistols e os T.Rex. Em processo de escuta não terminada estão os quatro primeiros álbuns, e até Elephant não descobri maneira de estancar o entusiasmo (temas como Offend in Every Way, Ball and Biscuit ou The Hardest Button to Button produzem em mim excitação motora difícil de disfarçar). Nem o embaraço de tê-los descoberto um pouco tarde.

[sinal vermelho aqui também]

Marcada para sofrer






















Contado poucos acreditariam. Mas lido no jornal a coisa fia mais fino: «A bailarina [Rita Marcalo], directora artística da companhia de dança Instant Dissidence, com sede na cidade inglesa de Leeds, é epiléptica desde os 17 anos. Marcalo deixou de tomar os seus medicamentos na semana passada e por 24 horas, a partir da uma da manhã do dia 11 de Dezembro, os espectadores poderão ver as suas tentativas de ter um ataque em palco.» A coisa ganha contornos grotescos logo a seguir:«Assim, haverá o recurso, no espectáculo, a luzes estroboscópicas, programas informáticos específicos, a bailarina terá de fazer jejum, privar-se de dormir, tomar estimulantes da actividade cerebral, como o álcool e o tabaco, e será elevada, artificialmente, a sua temperatura corporal. As actuações de outros artistas, em termos de dança e de instalações, entreterão os espectadores enquanto esperam que Marcalo tenha um ataque epiléptico.» A prosa parece tendenciosa, só que há dinheiro na história:«O Arts Council England justificou a sua decisão de pagar [13.889 mil libras, cerca de 15 mil euros] a Marcalo para a realização deste espectáculo afirmando que ela é uma “artista importante cujo trabalho merece ser visto”.» Gente da cultura que promove a tortura à condição de espectáculo. E uma bailarina (como todas as bailarinas, um anjo Deus meu!) que se vende como mercadoria exposta à condição pornográfica. Mais que pornográfica, uma vez que o actor arrisca ser subjugado pela personagem. Umas costas assim bonitas (anjos, como eu digo): havia necessidade?

Profissão de humildade


























De bom grado teria ficado em casa em vez de vir trabalhar. Página a página, tomando contacto com os horrores privados do mundo. Assim, rendeu apenas 30 páginas. Este Roth arranca com uma personagem que podia ter saído de um livro de Paul Auster: o actor sexagenário Simon Axler, que de um dia para o outro deixa de saber representar e passa a viver atemorizado com o facto. É um pouco como aquela história da hesitação e morte do robusto Porthos, ao fugir do túnel onde tinha ido colocar uma bomba. Quando pensa nas implicações do movimento de fuga, da colocação de um pé depois do outro, o próprio acto de pensar deixa-o bloqueado e a explosão trata do resto.

11.18.2009

Cabeçada


























Mother/ Tell your children not to walk my way/ Tell your children not to hear my words/ What they mean/ What they say [...]// Mother/ Can you keep them in the dark for life/ Can you hide them from the waiting world/ Oh mother// Father/ Gonna take your daughter out tonight/ Gonna show her my world/ Oh father [...]// Father/ Do you wanna bang heads with me/ Do you wanna feel everything/ Oh father// Not about to see your light/ And if you wanna find hell with me/ I can show you what it's like/ Till you're bleeding [...] Glenn Danzig


Saramago é um menino e eu ando por maus caminhos.

11.17.2009

A parte de tigre II

























Peguei em Neko Case pela parte de tigre. Ela gosta de tigres. Gosta de os desenhar. As ilustrações em The Tigers Have Spoken são da sua autoria. Neko tem a minha idade. Tem ainda uns lindíssimos cabelos ruivos. E eu calava-me. Ela ronronava enquanto lhe passava a mão pelos cabelos.

A parte de tigre


























It results in a film that is, at heart, as soft as Harry—and as soft as the sequence in which he spends the night with a sweet Sunset Strip waif who tells Harry, among other poetic things: "I saw this piece in National Geographic, about how lions and tigers always return to places of remembered beauty. [That's how they catch them.]

Vincent Canby refere-se aqui à sentimentalidade do filme, justo aquilo que me prendeu em Save the Tiger (1973), de John G. Avildsen. O raro momento em que me senti por ele apanhado. A parte da beleza como fatalidade: e como se soubesse que vai ser assim até ao fim.

11.16.2009

Repassar a lenda















I Am Legend dá a ver o filme (pós-)apocalíptico por redução, em contraste com a acumulação que faz a língua comum às produções do género. A primeira hora é das coisas realmente impressionantes do cinema contemporâneo: Nova Iorque destruída e deserta, filmada em silêncio nas perspectivas a que nos habituaram a olhar para ela, imagem que remete para a história recente (11.09.01) desta cidade que se confunde com a própria memória do cinema. Um homem atravessa a metrópole vazia na companhia da sua cadela pastor alemão. O tema carpenteriano da civilização reduzida à idade das trevas revisitado. I Am Legend subtrai tudo às funções e aos impulsos primordiais. A procura do outro e o instinto de sobrevivência. Palco desolador do formidável desempenho (físico e emocional) de Will Smith, na pele de um herói que tanto podemos considerar obstinado como aprisionado no cumprimento da sua lenda.

Afinal era o Carvalhal















José Eduardo Bettencourt apregoa surpresas que já não nos deviam espantar. O presidente que temos é um paridor de ratos. A sua boca, para citar outro dirigente, morre pelos ratos que engole. O mais recente chama-se Carlos Carvalhal. Carvalhal fazia alegadamente parte da short-list do Bettencourt Award for Next Coach, e a escolha recaiu sobre si porque tanto André Villas-Boas como Jorge Costa, alegadamente, declinaram o convite sportinguista. Se não temos outra ambição que esta, eu teria ido logo ter com Carvalhal, dos três nomes a opção menos sofrível – gostamos de verdes, mas a concepção de um treinador verde tem limites – e o único que se encontrava desobrigado contratualmente. Tenho a certeza que a apresentação do treinador será coroada de elogios e de novas promessas de conquistas por vir. Outros ratos que Bettencourt terá de engolir cedo ou tarde, e que terão sabor tanto mais amargo quanto mais escassos forem os ajustes do plantel na próxima reabertura do mercado. Bettencourt procura dourar com discursos a realidade cinzenta do nosso futebol profissional. Os que o ouvem são cada vez menos. Os que o contestam produzem um cada vez maior ruído. Posto isto, Carlos Carvalhal é o novo treinador. Será o meu treinador enquanto resistir, e merece o benefício de todas estas dúvidas.

11.13.2009

11.12.2009

Debaixo do vulcão





















Seria o contributo para ligar entradas autónomas da Wikipedia sobre um assunto do meu interesse. Tenho este disco dos El Caco, noruegueses de Lillestrøm, que merecem ser incluídos na página que reúne nomes de bandas de stoner rock. Tentei eu próprio editá-la. A tarefa mostrou-se complicada e falta um acréscimo de motivação para corrigir as mínimas imperfeições do mundo. A vontade é aliás outra. Apocalíptica. Prefiro assistir aos pequenos colapsos da existência humana com a música certa nos ouvidos.

11.11.2009

Agora ou never


















José Eduardo Bettencourt está num momento decisivo para dar prova das afirmações de candidato que apontavam o Porto como exemplo a seguir pelo futebol do Sporting Clube de Portugal. É preciso trazer um treinador que separe de imediato os coxos dos que têm fibra. Que não alinhe como mimos, amuos, berloques e penduricalhos. Que esprema os níveis competitivos da equipa, mesmo que estes se esgotem neste ano para fazermos uma grande época em 2010/11. Um treinador que seja claramente pelo futebol ofensivo, aquele que enche os estádios até nas derrotas (vide Jorge Jesus). Eu não tenho dúvidas sobre qual devia ser o próximo treinador do Sporting. Oxalá as contas não estejam tão por baixo como a nossa moral, e que possamos pagá-lo.

Robert Enke (1977-2009)



















Recordá-lo assim. Ou assim:


11.10.2009

Esta dupla é dose














Vou tentar explicar por que acho que a duração longa não é amiga dos Dapunksportif. Os argumentos são os de alguém que regressa ao rock há pouco mais de dois anos e reconhece na dupla de Peniche (João Guincho e Paulo Franco são os elementos fixos do grupo) superior competência na matéria. Mesmo assim, alguém que gosta de dar opinião sobre os seus entusiasmos até quando lhe falta o domínio desejado sobre eles.
Os Dapunksportif surgem em 2004. Descobri-os com uma décalage de 5 anos. As primeiras audições revelaram fortes parecenças com o som Queens of the Stone Age. Foi com o Ep Ready!Set!Go! (2006) que me apercebi de que os Dapunksportif tinham de algum modo sintetizado a adrenalina dos primeiros discos da banda de Josh Homme e Nick Oliveri, no que me pareceu uma versão suficientemente competente para lamentar a cópia. E havia ali a espreitar um pouco da intensidade dos Placebo do período Black Market Music, com as suas inflexões prego a fundo e riffs igualmente vibrantes. Seguiu-se na discografia dos Dapunksportif o álbum Electro Tube Riot (2008), que assinala a expectável evolução na continuidade no som do projecto, embora situando-se ali num ponto equidistante entre a anterior marca Queens of… e o som dos ZZ Top circa Eliminator e Afterburner. Tal como os ZZ Top desse tempo (os anos 80), os Dapunksportif mostram-se uma máquina de criar singles: Electro Tube Riot é a uma jukebox programada sob o critério da electricidade elevada e constante. Por onde quer que se entre no disco, é garantido que no curto espaço de segundos estamos de novo lá em cima com as guitarras sôfregas de João Guincho e Paulo Franco. Era assim nos 20 minutos de Ready!Set!Go!, e o efeito repete-se ao longo de mais do dobro dessa duração em Electro Tube Riot. A música dos Dapunksportif é tão eficaz na excitação que provoca, que a dado momento podemos reclamar por uma gravidade que faça com que a sintamos de outra forma. Já os profissionais dos downloads não podiam desejar colheita mais revigorante. Tenho a certeza de que o disco, uma vez desmembrado, bate sempre com a intensidade original. Numa outra lógica, bem vistas as coisas, os Dapunksportif são bem capazes de nunca terem deixado de estar com a razão. E caso fossem californianos e gravassem para uma Major, estou certo de que o impacto da sua música seria global.

Ronald Stuart Thomas (1913-2000)



















«Weariness, and disgust, underline most of the poems in his most recent collection, H'm, probably the most strangely entitled volume in English poetry. For his dramatis personae of hill-farmers and chapel deacons he here added God, a cold figure baffled by his Creation. 'It's just souring old age, I suppose. My mother used to tell my father, "Haven't you a good word to say about anyone?" And I remember this one time, he stopped and thought about it. Then he said, "No."'
But it is when he touches on traditional human preoccupations that he is at his most bleak. 'Happiness? I don't understand this matter of happiness. I find myself saying to couples when I marry them, "I hope you'll be happy." But it's too elusive and fleeting, I'm too honest to think anything remains the same.' He quoted Ceiriog, the Welsh poet. "The places where I used to play, the people there no longer know me.' Life is something that has to be endured: if there are values they are in the enduring.»

[retirado da introdução a The Man Who Went Into the West: The Life of R.S. Thomas, de Byron James, que toma por base o perfil do poeta e clérigo galês (e principal figura remissível para o último disco de David Sylvian, Manafon) feito pelo autor, 30 anos antes, para o Daily Telegraph]

11.09.2009

Miss Lava não engana























Como tive ocasião de comentar com um amigo, e com invulgar poder de síntese, Miss Lava é stoner tuga puro e duro (a voz de Johnny Lee aproxima-se de John Garcia, para quem perceba o que quero dizer). Uma vez terminado o circuito que os levará a Loulé, Benavente e Moita, espero vê-los em Lisboa numa sala onde haja espaço para a potência do disco Blues for the Dangerous Miles se soltar.

Agradeço ao pessoal da Carbono que pela primeira vez me alertou para esta banda, e à revista Loud! que passei a ler para perceber mais da cena rock/metal (de que já gostava por ser constituída por gente asseada e com bons modos), o reforçar da minha curiosidade.

O José Luís Peixoto que se cuide.

O bolero é o destino do corno


















Os Sorrisos do Destino (estreia 5ª feira) arranca com a câmara de Fernando Lopes a dançar o bolero fétiche do realizador, Sabor a Mi, em torno da estonteante modelo Ana Isabel, que parece estar a ser fotografada para uma marca de lingerie. A aproximação à fémea é muito etéreo-sexual, expressão que o protagonista Carlos Manuel ou Manuel C. (excelente Rui Morrison) usará para se caracterizar lá mais para o fim. É a volúpia do olhar que (já) não deseja o contacto, apenas o prazer visual. É também o primeiro de vários boleros que Fernando Lopes espalha por este seu novo filme: uma obra que só dissimuladamente quer dar-se ares de moderna. E um prazer tanto maior quanto mais íntimos formos da realidade que a precedeu, e que Fernando Lopes assume. Trata-se de um terno ajuste de contas com a separação que o realizador viveu em período recente. Lopes retrata-se em Rui Morrison, com a atracção pela bebida, por estados contemplativos (melancólicos), por casacos de bombazine e, claro está, pelos boleros, na mesma medida que Ada (Ana Padrão) é um reflexo ficcional e carregado de private jokes da ex-mulher do realizador.
Esqueçam o suposto comentário que o filme se "propõe" fazer às relações num momento em que as pessoas estão cada vez mais umas com as outras à distância (telemóveis, Internet, tudo isso), que é um pouco coxo, assim com frágil é o modo como Fernando Lopes filma (que não me parece ter que ver com a ligeireza de tom, essa sim claramente intencional e mordaz), no que não é ajudado pela opção pelo vídeo digital que resulta num efeito de má televisão. Olhem sim, e olhem com muita atenção, para aquilo de antigo que está no filme e que faz parte da natureza nostálgica e sonhadora do realizador, que permite fazer do ressentimento que acompanha o fim de qualquer ligação uma história de solidariedade masculina (Manuel C. e Manuel B, amante da mulher do primeiro, passarão juntos grande parte do tempo, e se isto não é a ironia sábia a funcionar não vejo o que mais possa isto ser), plena de cavalheirismo e de saborosa cumplicidade.
Vão-se as mulheres mas teremos sempre o presuntinho 5 Jotas, o vinho Duas Quintas e, como é óbvio, os boleros de Los Panchos. O resto é silêncio.

11.07.2009

The odd couple




















Irmão e irmã, marido e mulher, depois apenas... amigos. Who cares? (I don't). Vou repassar a história musical dos The White Stripes nas próximas semanas. E sempre a rockar: oh yeah, double yeah, triple yeah.

De cães e de homens (e de prémios)


















Aqui está um filme que através do cão engrandece o homem. E uma interpretação – que se destaca da qualidade altíssima do conjunto – que nos coloca de quatro no chão. Dean Spanley apresenta a mais antiga das propostas: a da reparação da dor pela narrativa. Existe uma história no interior da história do filme, que uma vez conhecida a sua conclusão, permitirá fazer um luto antigo (ou antes, dois lutos). O filme do neo-zelandês de adopção Toa Fraser, que adapta a novela de Lord Dunsany, My Talks With Dean Spanley, publicada pela primeira vez em 1936, é um pequeno milagre. Uma comédia sofisticada que parece Dickens filmado ora por Jean Renoir, ora por Tim Burton. À superfície evocação inofensiva, Dean Spanley acaba tocando os mistérios da natureza humana. Sobretudo os da natureza masculina. Trata-se de um filme de homens. Dos seus silêncios. Dos seus hábitos. Do seu orgulho. Da couraça que mostram para não dar parte fraca. O argumento de Alan Sharp é trabalho superlativo de graça e encanto, decantação primorosa da língua inglesa que soa aos ouvidos como o mais precioso Stradivarius. Dean Spanley trata ainda da alma britânica, profundamente conservadora. Elegia dirigida ao passado distante, dada com tal leveza de tom que não provocará as nossas mentes progressistas. A provocação está sim guardada para o próprio filme, que deste contexto marcadamente reaccionário tira a história de um homem, o deão Spanley do título, que acredita ser a reencarnação do cão (considerado pelo dono como "one of the seven great dogs", que diversas vez se lhe refere nestes termos) que pertencera a um homem que perdeu o filho mais velho na guerra da África do Sul com os Boer. Que maior provocação que a apologia do dono, do chefe, da autoridade de quem manda, do prazer de ser-se mandado, na actual época que promove líderes a todo o instante, fazendo-nos sentir a muitos de nós autênticos falhados? Estamos perante um filme sábio, que recolhe o saber dos tempos antigos, que maravilha com a fibra dos que têm génio a valer (uma espécie de carácter agridoce onde colidem brusquidão e ternura, delicadeza e esquiva), que tem o charme adulto das melhores fábulas. E um filme comandado pela presença de Peter O'Toole que de novo se supera na figura de um aristocrata de província, o desagradável Horatio Fisk. O velho Fisk é o "secundário" que se apodera do coração do filme: memorável coração que mais do que justifica a demasiado adiada coroação na próxima noite dos Oscars. Era o prémio a prestigiar-se acima do premiado com a distinção de um dos maiores: one of the greatest (dogs), sem dúvida.

11.06.2009

A festa da música por Muhly & amigos


















© Vera Marmelo (mais fotos aqui)

Houve música para muitas sensibilidades. Estava previsto serem 4 os elementos sobre o palco – Muhly, Amidon, Frost e Sigurðsson –, e apareceram oito (com o trombonista, a violetista, uma violinista e o rapaz do contrabaixo). Parecia que a Bedroom Community estava toda ali, ou no mínimo sobejamente representada pelos artistas da casa. Se as composições cantadas por Sam Amidon podem facilmente designar-se de folk electro-acústico, o resto do programa foi quase uma locomotiva de géneros dirigida a um destino comum. Música de câmara, instrumental, executada em instrumentos acústicos e através de sons arquivados nos computadores, que iam das cornucópias produzidas por metais, até às crepitações digitais da electrónica que faz lembrar madeira estalando em brasa. Os sons repetiam-se, outros surgiam como que por ilusionismo, as peças desenrolando-se com a complexidade que remete para a música clássica contemporânea, ali insuflada de espírito lúdico e de fortes dinâmicas que logo associamos ao pop/rock. Houve também uma dimensão performativa, mais nas composições de Nico Muhly (que conduziu todo o espectáculo), uma ginástica sonora que flexibilizava os timbres e os próprios executantes, colocando o público face a uma apresentação onde se viram malabarismos a solo e em grupo: sobretudo velocidade de execução e sincronismo. O paradoxo evidente de uma música culta que não se leva a sério. A Whale Watching Tour resultou na celebração da alma das baleias (que posso jurar se escutavam por vezes em fundo, com os seus glissandos que vão directo ao coração humano), tocada com a destreza de golfinhos. As palmas fora dos aplausos faziam parte da festa.

Livraram-se











Livraram-se do homem errado. Hoje não votaria em José Eduardo Bettencourt. Um presidente é um presidente; um adepto um adepto. Bettencourt mistura os papéis – razão e emoção atropelam-se nele com frequência – e perdeu a minha (modesta) confiança. Quanto às felicidades que desejo para o Sporting, não são diferentes dos votos que faço para o futuro de Paulo Bento: ele que mostrou esforço, dedicação e devoção, que obtenha glórias maiores no resto da sua vida.

11.05.2009

Os insuspeitos do costume





















[...] I think everyone's inherently snobbish. Things that are very popular are not taken seriously, because the snobbish side of one says, "Well, if everyone likes it it can't be that good." Whereas if only I and a couple of other people like it, then it must be really something special.

[...] Kitsch is a way that posh people admit to themselves that they like things that ordinary people like. In my opinion.

Brian Eno entrevistado por Joshua Klein no Pitchfork.















[...] If a nation doesn't have a shared moral code how can it manage to order itself and maintain peaceful co-habitation without tighter and tighter reins being applied? With the death of god (as I recently read someplace, shot in the back of the head) on what energy field is the moral compass based? I feel that with the death of the notion of an external god, a necessary step in our evolution perhaps, to some extent we've also done away with the notion of ourselves as spiritual beings, as something more than flesh and blood. This imbalance will need correcting if we're to continue to evolve holistically.

[...] Some of us bear heavier handicaps than others but as J.G. Bennett once said in a quote that is sampled on Robert Fripp's album 'exposure' "if you know you have an unpleasant nature and dislike people, this is no obstacle for work". Which I take to mean that, despite the most inhibiting of handicaps, work on oneself, in the spiritually disciplined sense, is always available to you. And again, same source; "it is impossible to achieve the aim without suffering". The cause of this suffering is of course, generally speaking, ourselves.
















I’m very attached to a beautiful formula written by Serge Daney, one of the best French critics who I had two or three classes with in Lisbon. He said that with the movies that we like, it is the films that see us. Of course it is you that is watching the film, but the film sees you, it watches you grow up. The film tells you something, to live this way and talk that way. I knew I would like to live in the worlds that some filmmakers showed me, and I could also see immediately that certain films were not for me, because they weren’t watching me. It’s a very beautiful formula, maybe a bit vague or poetic, but you feel it immediately. [...] With my own films it’s the same feeling. If it feels right it is like the images and the sounds are watching you and protecting you, showing you the way to do this or that. It’s not the script, it’s not your ideas. It’s something more real and integrated and in time. It’s more in life.

Entrevista com Pedro Costa no site da revista Little White Lies.

11.04.2009

Whale watching tour


















Amanhã voltarei a observar baleias com a pessoa com quem fui da primeira e única vez. Um dorso ali, aquela barbatana ao longe, o esguicho tímido antes da prolongada submersão. Esta é a proposta da programação musical do Maria Matos que concentra maior potencial de surpresa. Com a vantagem de acompanharmos os movimentos nas duas dimensões divididas pela linha de água (considerando no caso uma fronteira imaginária, transparente, entre o palco e o público). E de podermos observar formas que se aproximarão das composições de Antony, de Björk, de Philip Glass, de Laurie Anderson, dos Grizzly Bear, ou de outras que não identificaremos com a mesma facilidade e que por isso motivarão o nosso espanto. Baleias que traduzem os sons do mar mas em terra.

Uma comovente despedida


















Encontramo-nos no ano de 2006. Jane Tennison é uma superintendente alcoólica que descobrimos mais sozinha que nunca. Uma alcoólica anónima na medida em que resiste a reconhecer que tem outros problemas na origem daquele que tanto a prejudica e à sua imagem. Jane está a um mês de se reformar da polícia inglesa. Há uma jovem de 14 anos dada inicialmente como desaparecida que é encontrada morta. O pai de Jane está a morrer de cancro num hospital. Na primeira reunião dos AA's a que assiste, Jane dá de caras com Bill, um antigo subalterno com quem tivera sempre mau relacionamento. Por capricho da narrativa, Bill é a pessoa que surge nesta fase conturbada da vida de Jane. Jane está em perda. É uma questão de compaixão, o mais elevado sentimento que podemos ter uns pelos outros (identificarmo-nos com o que sentem os outros). Bill acaba sendo a única pessoa que Jane tem nesta altura. Ela estará com uma idade a rondar os 50 e muitos anos. Como lhe diz o pai, na cama do hospital, a vida dela fora sempre pautada pelas decisões correctas (pensamos em Jane Tennison e o que fica é a figura da mulher que para ser fiel a si própria acabou isolando-se dos de mais: da família, dos amantes, dos colegas de trabalho). Jane é uma mulher não reconciliada com o passado. O derradeiro caso que tem para resolver, debruçado sobre a vida de adolescentes com idade para ser seus filhos (se algum dia tivesse de facto considerado ter uma família dela), coloca a vida de Jane em perspectiva. E Prime Suspect despede-se de forma comovente. Seguidos cerca de 15 anos da vida desta mulher (experiência mais intensa se acompanharmos a série em DVD, ao contrário do que fizeram os telespectadores entre as datas 1992 e 2006, que correspondem ao arco irregular da produção), o que guardamos é dos retratos mais humanos que a televisão alguma vez deu. Temos todos um pouco de Jane Tennison em nós. As suas frustrações são as nossas frustrações. A sua mortalidade toca a nossa mortalidade.

11.03.2009

Capuchinho vermelho


























Resgatei o CD de estreia de Christina Courtin da pilha anónima de uma casa em festa. Está claro que pedi autorização ao dono (da casa e da festa) que não apreciava o disco e não lhe terá prestado grande atenção. Tocou toda a manhã seguinte de sábado e porque a sua duração é a justa, no duplo sentido, tocou variadíssimas vezes. Uma boa forma de se escutar alguns CD's é pô-los a rodar em modo "repeat", deixando a atenção fixar-se ao impulso do acaso (que nunca é completamente por acaso). É que o acaso acaba perdendo terreno para a atenção continuada quando os discos são de facto interessantes, como é o caso. Muito interessante mesmo. Christina Courtin rodeou-se de excelentes músicos que tal como ela integram uma cena nova-iorquina que tem hoje sobretudo uma carga histórica, de tão indefinida que é a sua configuração. Com Christina (violino e voz) tocam Marc Ribot, Greg Cohen, Jim Keltner, Jon Brion, e outras quantas luminárias. O ambiente do disco faz lembrar um cruzamento das sensibilidades tímbricas e de composição de Rickie Lee Jones e Marisa Monte, o que vem dar algo próximo do que se observa na discografia recente de Andrew Bird (aquela que conheço, "iniciada" no Mysterious Production of Eggs), sendo que o instrumento que ambos privilegiam, o violino, é utilizado por ele com uma propensão algo olímpica. Christina Courtin é mais modesta de intenções, embora os resultados nada fiquem a dever ao rouxinol de Chicago. Obviamente que temos senhora escritora de canções, e logo na figura de um adorável capuchinho vermelho moderno e cosmopolita.

[ou a mais recente descoberta que devo ao João Lisboa, para alguns de nós apenas conhecido como o 'guru']

For a nice Chet


























Tenho este vídeo pronto a estrear. Estás convidada.

11.02.2009

Não vamos ver este filme (o que perdemos?)













André Téchiné realizou Les Témoins em 2006. Tanto tempo depois não é plausível que venha a ter estreia comercial entre nós. Téchiné acrescentou entretanto um novo título à sua obra: La Fille du RER. O que ficámos a perder? Há o princípio sempre de lamentar que passa por ver um cineasta com que nos habituámos a privar que não encontra espaço na programação das salas portuguesas que acumulam produtos indigentes a cada nova semana. Les Témoins é um filme arriscado (pelos motivos mais académicos, quem diria?) e é ao mesmo tempo um dos títulos mais acessíveis do realizador francês. A SIDA tornou-se uma doença esquecida a não ser por aqueles que com ela privam nas suas vidas. Os doentes sobrevivem muito mais tempo, e alguns revelam-se mesmo casos surpreendentes de resilência. Só que Les Témoins, à semelhança dos teledramáticos surgidos na época, reporta aos tempos da eclosão do flagelo e das primeiras diligências efectuadas no seu combate, para tratar verdadeiramente da convivência de um grupo de amigos que estará intimamente ligado a esse momento em que a SIDA se manifestou na sua implacabilidade perante o nosso desconhecimento. Olhado com os olhos do presente, isto representa o lado menos interessante (o já visto). O que nos agarra, o que traduz a sensação de pertencermos àquela história tem que ver com qualidades que se mantêm inalteradas no cinema de André Téchiné. A sua paleta humana é vasta, surpreendente nas contradições, e Téchiné é exímio a dirigir o grupo de actores que inclui incondicionais (Émmanuelle Béart), outros consagrados (Michel Blanc), e descobertas (Johan Libéreau). E também o facto do filme funcionar muitas vezes como variação sobre personagens canónicas do universo Téchiné, de novo baralhadas na sua função. Não poderei ser tão assertivo ao ponto de dizer que Téchiné faz sempre o mesmo filme. O que se passa é que os temas que lhe interessam atravessam toda a sua filmografia, e isso permite reencontrar personagens e situações que introduzem ligeiras variações sobre exemplos do passado. Para quem viu J'Embrasse Pas, um título do começo dos anos 90, Les Témoins pode bem levar à assaz estimulante comparação. Deixo para o fim a nota particular para o modo como Téchiné faz eclodir sentimentos que ligam de diferentes maneiras, e com intensidades diversas, as personagens. Mantendo-se sensível a um tipo de figura masculina jovem, viril, com um charme que tem qualquer coisa de selvagem (também pelo modo como exprime uma sensualidade liberta de constrangimentos), Téchiné é alguém que dá conta da individualidade do desejo, porque ninguém tem a mesma forma de gostar e cada um procura entregar-se à sua maneira.

Santos populares


























A partir de hoje em frequência indeterminada.

[esta é para ti, António]

Ifigénia


















Foto: Luís Santos ou Paulo Silva.

Duas horas envolta num lençol sem nunca se deitar. Ah, a Batarda.

Lia e as outras mulheres

«Jaime Ramos recorda aquele quarto minúsculo em Espinho – e as janelas abertas por onde entrava o ruído do mar, misturado com o cheiro das farturas, o ruído de um comboio que passa entre as dunas, o jornal dobrado e lido. Lia era um nome que não se esquece e que cheirava a rosas. Esperava por ela aos sábados à tarde, na estação, avistava aquele casaco comprido, o cachecol azul, azul-turquesa, não era um cachecol bonito, mas visto de perto tinha uma espécie de relevo, de enfeite, e ele gostava do cachecol porque ela tinha um pescoço bonito e ele ficava em silêncio, deitado, a observar as veias do pescoço, um contorno, uma ruga minúscula, uma pequena cicatriz, e ele ficava a olhar, distraído, enquanto Lia, adormecida, de braços estendidos ao longo do corpo, lhe fazia lembrar uma coisa que ele só entendeu mais tarde – uma espécie de beleza impura, de beleza oculta sob a aparência das coisas banais. Coisas que se detectam dificilmente, uma traição no olhar, um tremor na pele, uma veia que demora a recuperar a tranquilidade. Uma beleza difícil.
Aprendeu a reconhecê-la em Lia, mas não sabia dar-lhe um nome – era a beleza oculta, mascarada de pudor, aquele casaco azul. Havia a forma como Lia tirava a roupa, quase escondida, o cinto deixara uma marca na barriga, ele gostava de passar a mão sobre a marca do cinto que apertava a cintura, e a forma como fodiam depois, e ele observava Lia na rua e sabia que só ele sabia que os dois fodiam daquela maneira, por detrás daquela máscara de pudor. Amou o pudor, daí em diante, mais do que as evidências, a exibição, a conversa sobre sexo. Eram um casal que se encontrava em Espinho. Apenas isso: um casal que se encontra em Espinho enquanto Emília não aparece na sua vida.
Oh, as mulheres. As mulheres que mudaram e não mudaram a sua vida. Lia, Rosebel, Emília, Maria Luísa, Rosa, as mulheres que se sentaram ao seu lado no cinema, as que ele aprendeu a cortejar, as que esqueceu, as que não lembra, as que estão a um palmo de distância, as que o levaram a dançar num modesto clube de bairro, de vestido novo, com aquele cheiro de domingo à tarde, o mais triste dos cheiros dos dias da semana. E os domingos à tarde, justamente, Lia e ele, deitados na cama do pequeno apartamento de Espinho, 10 de Setembro de 1972, deitados, ele levanta-se e vê os comboios cruzarem-se na linha do horizonte. Lia puxa o lençol para cima, ele liga o rádio, a sorrir, deita-se de novo, agora sobre ela, ouve-se o relato de um jogo de futebol (ele relembra a Guiné, de onde regressara para os braços de Lia), um ruído longínquo que entra no quarto à mistura com o vento que, na rua, arrasta lixo e poeira em ruas que vão ficando desertas com o crepúsculo alaranjado e cinza. Ah, as mulheres.
O que eras em 1972? Um homem a despedir-se. Despedidas de África. Lia – de quem se despediu no cais de uma estação de comboios, entre gente que subia e descia as escadas. Ele não olhou para trás. Onde estaria Lia, agora? Ah, as mulheres, um músculo móvel no tornozelo, a palpitação de uma veia, um calor, uma imperfeição de que se aprende a gostar, adorável imperfeição – a de um risco na pele, uma gordura a mais, uma dobra na pele, um sinal de perguiça, de mau-humor, uma pequena rouquidão ao acordar, a forma como acordam, uma penugem na barriga, ou por baixo do ouvido esquerdo, aquele que fica mais próximo, ah, as mulheres. [...]»

[O Mar em Casablanca, Francisco José Viegas, Porto Editora, págs. 160/161]

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