10.31.2006
Com sossego, sem sossego
Ah quanta melancolia!
Quanta, quanta solidão!
Aquela alma, que vazia,
Que sinto inútil e fria
Dentro do meu coração!
Que angústia desesperada!
Que mágoa que sabe a fim!
Se a nau foi abandonada,
E o cego caiu na estrada -
Deixai-os, que é tudo assim.
Sem sossego, sem sossego,
Nenhum momento de meu
Onde for que a alma emprego -
Na estrada morreu o cego
A nau desapareceu.
Fernando Pessoa, 3-9-1924
10.30.2006
Double Streep
Meryl Streep integra o elenco de dois filmes estreados na passada quinta-feira, que por capricho acabei vendo no mesmo dia, ontem. O de Robert Altman é muito fraco. A Prairie Home Companion obedece à estrutura da derradeira emissão de um programa de rádio, gravado ao vivo, e tem actores a fazer de músicos, músicos a fazer deles próprios, um anfitrião algo monocórdico (Garrison Keillor, as himself), e tem também a aplicação do método de filmar de Altman que assenta fundamentalmente em fazer a câmara cheirar cada canto dos bastidores do Teatro Fitzgerald onde a acção tem lugar, em busca das histórias mínimas daquela gente toda. E tem finalmente Virginia Madsen entregue à figura de uma assombração benévola que não se percebe lá muito bem o que anda ali a fazer, a não ser falar da sua morte já ocorrida e prenunciar a morte de alguns outros personagens. Depois de Gosford Park, Robert Altman continua a marcar passo...
Já The Devil Wears Prada não é assim tão superior. Por muitas voltas que se lhe dê, é impossível ver nisto mais do que a história da Cinderela que quis voltar à condição de gata borralheira. Pense-se ainda em Pretty Woman (a fantasia de qualquer adolescente desfavorecida ou de qualquer jovem imberbe com hormonas aos saltos por Julia Roberts de botas de cano alto); pense-se em Oficial e Cavalheiro (a sobrevivência num meio hostil, com uma editora da proto-Vanity Fair na vez de um sargento dos marines) e aplique-se os dois modelos ao universo da moda à escala de um qualquer arranha-céus de luxo de Nova Iorque. O que fica então? Fica o conceito de fashion victim ilustrado no sentido mais literal e estereotipado, ao qual sobrevive apenas a composição de Meryl Streep, sofisticadíssima e com uma bela cabeleira branca. Ela é o diabo que dá nome ao filme do não sei quem, que talvez convença apenas a mais desesperada das donas de casa. Embora distrair seja faculdade que não lhe podemos negar. Como repetiria o outro ou eu mesmo, vê-se.
Obra aos defuntos
Não pensemos, para já, se se trata de obra-prima. É o melhor Scorsese desde 1995, o que, convenhamos, é dizer quase tudo. The Departed - caso fosse correctamente traduzido daria Os Defuntos (e não Entre Inimigos, como figura nos cartazes) - acaba sendo sobre a mitologia (positiva e negativa) criada em torno daqueles que morreram, que afecta a existência dos descendentes e o modo como estes são percepcionados no contexto das organizações criminosas que funcionam como extensões das suas familias de sangue.
Sabemos que a morte é um facto incontornável na vida de todos nós. Para os personagens deste Scorsese, e uma vez mais, ela limita-se a chegar cedo e de forma quase sempre imprevista e violenta. O tempo dirá se The Departed justificará o estatuto que se antevê. Importa agora confirmar que é de uma obra de arte que falamos, prodigiosamente escrita por William Monahan, que Scorsese enquadra de modo seco e implacável. The Departed mostra pessoas que morrem frequentemente como animais. Para encontramos filme igualmente desencantado e lúcido teríamos que recuar até Mystic River, de Clint Eastwood, cuja acção tem também lugar em Boston, ocupando-se de igual modo da comunidade irlandesa aí residente. O grande cinema tem destas coincidências. Um dos filmes de 2006 mora de novo aqui. Estreia a 9 de Novembro.
10.26.2006
O gato tem fagote
Continuamos muito clássicos, algo barrocos, deveras contemplativos: o suficiente para notar que as luzes de Natal em Campo de Ourique já se acenderam. Miau...
10.25.2006
Parnaso revisitado
O da esquerda é mais antigo. O outro acabou de sair. Por onde quer que se comece, os prazeres no Parnaso têm continuação assegurada. Composições, sonoridade e execução, tudo se mantém magnífico, em perfeito equilibrio. Leva uns segundos apenas a perceber de que lado está a razão: os violinos têm sempre razão. Apenas os surdos devem abster-se.
10.24.2006
Outro Vinicius (o grande lance)
Fala-se constantemente do Brasil e da sua música. Nunca se falará suficientemente de Vinicius Cantuária: tem a discografia mais imaculada da "MPB recente" (descontando o facto de ele andar nisto pelo menos desde os anos 80, mas isso são outras histórias...) - meia dúzia de títulos já constitui uma discografia, não acham? E se não fosse coisa ainda demasiado próxima do amor, juntaria algumas linhas concretas - meaning, biográficas - a esta argumentação. Sendo as coisas como (ainda) são, apenas três nomes para os três indivíduos que fizeram (sozinhos) este disco - Cantuária, Arto Lindsay e Ryuichi Sakamoto.
[Quando tudo parece que arde, o fumo espalha a sua cor negra e as cinzas amontoam-se pelo chão, ficam as músicas. E os discos que vão connosco para todo o lado. E que escutamos a vida inteira]
Quem responde
[Quando Nietzsche Chorou, Irvin D. Yalom, págs. 117/118, Saída de Emergência, 2005]
10.23.2006
10.21.2006
Teatrinho de máscaras
O cinema de Sofia Coppola adolesceu. Com este Marie Antoinette cria-se a sensação de estarmos perante um teatrinho vistoso mas pouco profundo: aliás, como na curta-metragem de Coppola pai, Life Without Zoe (escrita a meias com a filha), integrada nas Histórias de Nova Iorque (1989). Os anacronismos musicais quase nunca são pertinentes. O filme confunde muitas vezes leveza - algo que, sabemos bem, pode ser quase insustentável - com ligeireza. Sofia Coppola mantém, no entanto, intactas, as suas qualidades para filmar de modo atmosférico e intimista, só que desta vez tudo aquilo existe muito pouco: como numa visita guiada a Versalhes para olhar apenas, sem mexer. O filme não nos toca. Ou, melhor dizendo, o filme não me toca. Vê-se.
10.20.2006
10.16.2006
Fora de horas
Isto não é ficção. Aconteceu comigo. Uma pessoa já é assaltada em Lisboa (na rua onde mora), em inglês, como nos movies.
10.12.2006
Marine
quando je connaissais marine
cendrier dans la cuisine
on ne se comprenait pas bien
je ne la comprends pas encore
son visage quand elle s'endort
je regarde et puis j'éteins
je ne peux pas
effacer
le garçon juste avant moi
il faudra diviser certains sentiments par trois
(marine, Les piqûres d'araignée, 2006)
10.11.2006
Made in Sweden
"greatest thing i've heard/ but i didn't get a word"
"un poinçonneur de lilas/ ça veut dire quoi"
Comparar a escrita de Vincent Delerm com a de Serge Gainsbourg, como eu fiz, é obviamente desproporcionado. Gainsbourg foi um génio, Delerm tem momentos de inspiração. Felizmente tem-nos com relativa frequência. Les Piqûres d'Araignée foi gravado na Suécia. É um disco outonal, a coincidir com o momento do seu lançamento. Os Inrockuptibles dizem que é o primeiro disco do Delerm homem. Se isto se refere ao facto de ele parecer mais liberto dos jogos de linguagem, do efeito de citação, da impressão humorística, da densidade dramática - muito cinéma - de algumas canções (principalmente no excelente Kensington Square, ainda o seu registo mais ambicioso), então aceito. Assim como terei de aprender a viver com a sensação de que a voz de Vincent Delerm, agora mais melodiosa, se distancia da referência Gainsbourg (assumida pelo próprio: está nos três discos) para - ó heresia! - situar-se mais próximo de um Joe Dassin de baixas calorias. Sintomático do que Les Piqûres... pretenderá ser, pode tomar por exemplo Favourite Song, a penúltima música. Enquanto que em Kensington Square, Vincent Delerm parecia afirmar-se como o Neil Hannon do outro lado da mancha, desta vez preferiu convidar este para um dueto em que ambos afirmam o amor pelas canções, pelos sentimentos que encerram mesmo quando não compreendemos parte do que dizem. A escrita de Delerm nunca foi tão discreta como nas treze canções que constituem Les Piqûres d'Araignée. Motivo pelo qual, contrariando o que na frase anterior se afirmou, acho que é neste disco que teremos de prestar máxima atenção às letras. Aquilo que irei fazer antes de me alongar por mais considerações.
10.10.2006
Assobiar faz bem
Vincent Delerm, recordam-se?
Acabado de chegar, mal ouvido até ver, a confirmação da confirmação da confirmação.
10.09.2006
João Paulo Simões, para memória futura
«Antes sentia-me intranquilo porque sentia o tempo a ultrapassar-me: nunca vou ser tão bom quanto o Charlie Parker ou fazer canções como o Chico [Buarque]. Mas agora sei que não é assim tão importante. Fiquei mais calmo quando deixei de querer ser outra coisa qualquer – foi um doloroso alívio. Tento ser eu próprio – é cansativo. E não tem piada nenhuma. Quem quer ser João Paulo Simões?»
«Isso [Werther, um instrumental] começou por ser uma canção de amor impossível – tentei fazer uma música para exprimir a maravilha… [pausa] por causa dos olhos de uma mulher. E depois acabei por sentir uma coisa parecida com aquilo que é a ideia mais profunda do “Werther”: ele apaixona-se pela sua imagem do amor. Resta saber se a música exprime alguma coisa parecida com isso. Como dizia o outro: “Transforma-se o amador na coisa amada” [Herberto Helder]… Tem de haver um lado encantatório, porra…»
«Falta-me o que sempre me faltou: alegria.»
JP Simões entrevistado por João Bonifácio, Y, 29 Set. 2006. O disco sai em finais de Outubro, inícios de Novembro.
Mel e abelhas
O novo disco de Chico Buarque (mais inspirado, mesmo considerando que as composições tem origem num período de tempo mais alargado e apresentam várias co-autorias) bate aos temas o de Caetano. É a vida. A bílis que se escuta em Cê já Buarque transformou em licor Carioca. Digamos que a diferença fundamental reside no facto de um dos brasileiros fazer passar para o disco o ajuste de contas face a desilusão amorosa recente (talvez já não romântica, mas muito pessoal), ao passo que o outro fazendo igualmente um CD onde a figura feminina atravessa cada linha de cada canção, mostra que em relação à mulher não alimenta mais quaisquer amarguras ou ilusões: todas elas se equivalem (Renatas, Marias) na capacidade de dar prazer e fazer sofrer. Lembra aquele provérbio… “se queres provar o mel, aguenta as abelhas”.
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10.06.2006
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