5.31.2012

82

Apodado de bom

























Li as primeiras 25 páginas de "penalte". Faltou a luz no trabalho e quedei-me meia-hora à janela. O prazer é da ordem do que experimentamos com a escrita de Mário de Carvalho. Isto é um tremendo de um elogio, sabe-o os que o sabem. Menor o sacrifício de o emprestar antes de tê-lo de novo para mim. O Manolo deste livro faria o mesmo. 25 páginas bastam para dar mais essa certeza.

5.30.2012

Campeões no mau exemplo
















No SOL.

O desportivo espanhol As divulgou um estudo que pretende identificar quais as selecções que vão gastar mais com a estadia para o Campeonato da Europa de 2012. (...) Assim, a selecção nacional vai gastar cerca de 33 mil euros por dia e ocupa o primeiro lugar da tabela. Já a selecção espanhola vai ser a que menos vai gastar em hotéis, 4.700 por dia. A Rússia é a segunda selecção a gastar mais com 30.400 euros diários.

Selecção e custo de hotel:
1. Portugal - Opalenica 33.174 euros
2. Rússia - Varsovia 30.400 euros
3. Polónia - Varsovia 24.000 euros
4. Irlanda - Sopot 23.000 euros
5. Alemanha - Gdansk 22.500 euros
6. Rep. Checa - Wroclaw 22.200 euros
7. Inglaterra - Cracóvia 19.000 euros
8. Holanda - Cracovia 16.200 euros
9. Italia - Wieliczka 10.500 euros
10. Croácia - Warka 8.300 euros
11. Dinamarca - Kolobrzeg 7.700 euros
12. Espanha - Gniewino 4.700 euros

Isto é bom

Um anti-melodrama


















Há como que uma cortina de fumo, mesmo quando ninguém está a fumar, a luz sempre difusa, se é que alguém está a recordar, percorrendo o filme que Terence Davies fez com base na peça de teatro The Deep Blue Sea, de um outro Terence, Rattigan (1911-1977). O fumo assinala um incêndio há tempo extinto: a paixão de Hester (Rachel Weisz) e Freddie (Tom Hiddleston) de que quase só testemunhamos consequências, ressentimento e dor. Nos primeiros minutos do filme, enquanto se escuta o movimento lento do concerto para violino de Samuel Barber, estamos como que imersos num sonho, e a coreografia que a câmera estabelece ajuda a criar o sentimento de suspensão da coisa idílica que é o amor erótico. Somos depois confrontados com a tentativa de suicídio de Hester, uma mulher que abandonara o casamento de conveniência com um respeitado juíz, notoriamente mais velho que ela, o decente Sir William (Simon Russell Beale), para seguir com o seu entusiasmo por um canalha superficial acabado de regressar vitorioso da Segunda Grande Guerra (onde pilotara aviões). O resto de The Deep Blue Sea (2011) será gélido como uma câmara frigorífica do (des)amor. As expectativas de melodrama mortas e enterradas pelo texto de Rattigan e pela planificação austera, muito campo-contracampo, de Davies.
Pode dar-se o caso de recordarmos a condessa Livia Serpieri no filme Senso (Sentimento, 1954), de Luchino Visconti. A mulher era ali também o agente amoroso e o homem manipulador caprichoso. Tem sentido, em universos marcados pela orientação sexual gay dos criadores (Visconti, Rattigan e Davies), que seja o elemento masculino o móbil da tragédia, sendo que no caso de The Deep Blue Sea a tragédia é o desencontro de um sentimento profundo que, contrariando as aparências da origem, não é correspondido. A peça de Terence Rattigan é quase um tratado filosófico que visa alertar para as armadilhas do amor, fútil devaneio que leva invariavelmente ao sofrimento: que, segundo o dramaturgo, não augura bom futuro e vem desinquietar as nossas vidas previsíveis e seguras. O realizador Terence Davies não ousa contradizê-lo. Nada existe de emotivo nesta representação de um tempo passado (a Londres de 1950), porque nem o triunfo na Guerra ecoa na história de amor: aliás, nada ecoa, e experimentamos a sensação estranha em muitos momentos de o som do filme estar reduzido aos diálogos (e nada mais?). A porteira da casa para onde Hester vai viver ao deixar o marido, dá uma definição crua e sombria do amor quando diz que consiste em zelarmos pela higiene de alguém que esteja enfermo, para que se mantenha digno em vida, e está tudo dito. Viemos até aqui para observar o rescaldo da ilusão romântica. Compre quem quiser.   

5.29.2012

Ó diabos


















Enquanto existir um Petitjean à face da Terra, nenhum homem pode viver tranquilo.
Agora parece que há outro.

Terence on Terence



Sometimes, you know, it's a bit too repressed. You know, so repressed that it's not there.

João Salaviza vezes três















O que mais impressiona na curta-metragem Arena (2009), prémio máximo de Cannes, é que a partir do momento em que passamos do interior da casa do protagonista, um jovem que se tatua (Carloto Cotta) e que traz uma pulseira prisional no tornozelo, para o espaço exterior, parece que nos encontramos numa prisão a céu aberto, no que será possivelmente um comentário de João Salaviza em relação às habitações sociais, guetos que logo condicionam a situação social de quem lá vive. O resto é a mesma intuição para o cinema que já lhe reconhecia, colocando o corpo no centro de tudo (da acção), e confiando numa ideia de mise-en-scène mais que numa narrativa. Assim uma curta se fez maior.















Em Cerro Maior (2011) persiste o diálogo entre o cárcere e o espaço livre, que pode ser entendido como uma forma diferente de se estar encarcerado. É dos filmes de João Salaviza agrupados no DVD, aquele que talvez deixe a ideia de que algo ficou por cumprir, ou então que havia aqui matéria para maior duração, o que não é a mesma coisa. A razão é simples, prosaica, é dos compêndios. Começar um filme com alguém cria a expectativa de que é a história dessa pessoa que iremos acompanhar, o que no caso de Cerro Maior muda radicalmente a partir da visita de Anajara  ao companheiro Allison, que se encontra detido. O filme passa a ser dele e fica-se com a sensação de que o que veio antes se esvazia de importância. Mas é finalmente Allison que se descobre fora de cena.





















Sobre Rafa (2012) escrevi anteriormente e mantenho o que escrevi. Dos três o melhor.

5.28.2012

Au hasard Béla Tarr

A 14 de Junho, estreará pela distribuidora Midas, pela primeira vez em Portugal, um filme do cineasta húngaro Béla Tarr (n. 1955). Há muito que ouço este nome, tive uma ou outra ocasião, na Cinemateca, para descobrir a sua obra, mas por qualquer razão (a que a longa duração ou muito muito longa duração dos filmes não é alheia), acabei por deixar para mais tarde. Na passará de Junho próximo, por intermédio de O Cavalo de Turim (2011, 146 min.), e vou em busca de algo que o cinema deixou de proporcionar quase por completo: o vislumbre da transcendência que percebemos específica ao próprio meio de expressão. O cinema a transcender a vulgaridade audiovisual que nos cerca mais e mais.

O que se escreve neste artigo é bastante promissor: The Hungarian director Bela Tarr has said that “The Turin Horse,” his ninth feature, will be his last film. Could he change his mind? He is only 56, part of a generational cohort of filmmakers that includes Spike Lee, Olivier Assayas and the Coen brothers, who all retain an aura of youthfulness in middle age.
Mr. Tarr is the opposite. From the beginning there has been something ancient and ageless about his films. Even as he reflects the influence of earlier European modernists like Michelangelo Antonioni and Miklos Jancso, he has also seemed like a time traveler in modern cinema, an émigré from an older, middle-European world of literature and philosophy or, to go a little further, a medieval stone carver who happened to get his hands on a camera.

Se é para partir pedra, partamos então pedra com Mr. Tarr. E se puxar para dormir, paciência.

Um clássico

























Fotografado aos 40 anos por Herb Ritts para a Vanity Fair (2002)

























Fotografado com 50 anos por Mario Sorrenti para a W (2012)

Poesia




















Que bem que estávamos se todos os meses estreasse um filme como o sul-coreano Poesia (2010), realizado por Lee Chang-dong. Drama adulto, cheio de ramificações e implicações morais, filmado com uma serenidade e uma clareza que não se alteram independentemente da natureza de cada cena. O mais objectivo que é possível ser dentro da inescapável subjectividade que qualquer câmera de filmar pressupõe. Totalmente coeso mas não inteiramente conseguido, Poesia encaminha-se para a construção de uma história exemplar que tem algo de via sacra: a sexagenária do filme de Chang-dong, que coloca a sua vida ao serviço de outros (trabalha em limpezas domésticas, na assistência a pessoas acamadas, e tem ao seu cuidado um neto adolescente boçal) e que tem no curso de poesia a possibilidade de criar um espaço de beleza só seu e redentor, pertence à galeria de mulheres como Bess McNeill do Ondas de Paixão de Lars von Trier, que são levadas a extremos de sofrimento e despersonalização em nome da expiação do mal dos outros (onde não falta a cena da gratificação sexual). Elementos alguns escusados num filme que tinha a ganhar com uma riqueza (poética) menos ostensiva, mas isto é queixa que nasce da satisfação, que o filme é mesmo bom.

E os outros, e os outros e os outros

~



Foi um fim-de-semana de superlativos e alguns desses momentos tiveram esta voz no fundo.

5.25.2012

Melão

Já não tenho a vossa idade.

Murnau e os outros

Alexander Dovzhenko, Zemlya (Terra), 1930.


Miguel Gomes, Tabu, 2011.


Precisava das imagens justas mas parece que me faço entender: como se instantes antes da morte o corpo se iluminasse mais intensamente, querendo isso significar paz ou remorso, pois quando a luz se vai os corpos ficam todos iguais no escuro.

Ministórias






















Clarice tinha um cão.

Hmmm

5.24.2012

A lotta spaghetti

Rien vu...

























Os meus sonhos são regra geral bastante realistas e têm uma relação directa com o que acontece na minha vida desperta. Isto quando me recordo do que sonho, ou quando o que recordo não se escapa momentos depois de ter acordado. Ontem sonhei com o filme de Alain Resnais que está em competição em Cannes. Encontrava-me numa sala de cinema com uma actriz portuguesa bem conhecida do meu lado direito, que apresentava junto de si duas crianças que pela idade não podiam ser suas filhas. Mas eram. Daí que conclua que os tempos do sonho se tenham misturado e que havíamos em parte regressado a um passado em que aquelas miúdas podiam ter nascido daquela mãe. A dado momento da projecção eu estava dentro do filme, deambulando por espaços que não consigo reconstituir, mas que se me afiguravam como oníricos, o que tratando-se de um sonho não deixa de ser redundante. Mas porquê o Resnais, que é cineasta por quem não nutro particular estima? E era o Resnais, tenho a certeza, que me cruzei com ele pelos cenários do filme que Cannes viu, e que eu também vi mas não vi. Dormi um número importante de horas seguidas, e pela primeira vez em muitos meses não me levantei a meio da noite. Isso é o que mais importa. Ninguém se queixa da duração do filme quando está a sonhar.

Licença para beijar o céu

5.23.2012

Um símbolo

















Se demos o nome de Vítor Damas a uma das balizas, é de inteira justiça que se baptize a cabine de suplentes onde se senta a equipa do Sporting com o nome de Manolo Vidal. Um clube vive dos seus símbolos, mais que do património. Aliás, um património destituído de símbolos quer dizer nada.

5.22.2012

Lettering e afins

Edmund Trzcinski (cómico ou trágico)




















O prisioneiro Trzcinski, após ter lido a carta enviada pela mulher:
I believe it. My wife says, "Darling, you won't believe it, but I found the most adorable baby on our doorstep and I've decided to keep it for our very own. Now you won't believe it, but it's got exactly my eyes and nose." Why does she keep saying I won't believe it? I believe it! I believe it.

O mais curioso, para não dizer masoquista, é que um dos autores da peça Stalag 17, adaptada depois por Billy Wilder, tenha sido escolhido para interpretar a personagem mais trágica, que usa o seu próprio apelido. Como se cada homem fosse a medida insubstituível da sua felicidade.

Dangerous methods



Estreia a 25 de Outubro e acredito que pode ser bom.

Are you experienced




















Stalag 17, filme de prisão em situação de guerra, sem pingo de sentimentalismo. É, se quisermos, o anti-Frank Darabont. O colorido das personagens também lembra John Ford: trocando irlandeses por alemães. Mas é Billy Wilder quem realiza. Daí que a comédia humana surja revestida de farsa.
The Jimi Hendrix Experience, citados no perfil de Mário Lopes sobre os stoners minhotos Black Bombaim, no último Ípsilon. Nunca os ouvi, mas quanto à música que escutam não podíamos estar mais em sintonia. E o Jimi Hendrix continua uma máquina, mesmo depois de morto.

5.21.2012

Sean Penn quer pôr a tua mulher a ren......













Do proxenetismo disfarçado da defesa de nobres causas. Ou mais um recorde batido pelo politicamente correcto na boca de idiotas. Santa paciência.

Extensões da pauta





De Spike Lee em direcção a Donny Hathaway, com passagem por Aaron Copland. Ver e ouvir de cima para baixo.

Gentileza


















Uma coisa é um filme que por delicadeza quase peça licença para existir. Um filme tímido. Jacques Rivette (1 Março 1928) tem obra para não se intimidar com as coisas do cinema. Outra coisa bem diferente, é um filme ter a gentileza de quase não existir. Existindo num plano paralelo que é ao fim e ao cabo o mundo em que vivemos retirando-se-lhe o ruído e os maus sentimentos. Uma espécie de fora neste mundo. E pode ser tão estranho lavar a alma que a temos tão cheia do que não interessa. 84 minutos para 36 Vistas do Monte Saint-Loup.

5.18.2012

Comédia



Melodrama



Palma















Continuar a ser premiado por ti e por muitos anos.

5.16.2012

Palíndromos

















Ouvimos o que são palíndromos da boca da filha pequena de Pietro (Nanni Moretti), a quem tinham ensinado na escola sobre palavras ou frases que se lêem da mesma forma da esquerda para a direita e no sentido inverso. Existe um efeito palindrómico que se estende a todo o filme, Caos Calmo (2008), de Antonello Grimaldi, que tem nas pontas dois salvamentos onde os agentes se revezam: se Pietro evita o afogamento de Eleonora no começo do filme (ao mesmo tempo que a sua mulher tomba morta na casa de férias próxima da praia), é Eleonora que traz Pietro de regresso à vida quando com ele tem sexo numa noite sem outras consequências que o resgate do homem ao luto. O modo como os corpos actuam um sobre o outro reforça este efeito palindrómico. O cinema faz-se e distingue-se nestas coisas: ao sacrificarmos uma maior plausibilidade a um bom palíndromo.    

'Andrea Doria' no volume máximo





Letra e música (o áudio ao vivo está melhor).

5.15.2012

London pride

O meu coração





















Fotografado por I. D.

Até parece simples

























Assim que Downton Abbey se deu a conhecer ao mundo, logo começaram as comparações com Brideshead Revisited. Existe nas duas séries uma propriedade centenária para onde converge todo o simbolismo da época: na primeira temporada de Downton o período compreendido entre o desastre do Titanic e o início da Primeira Grande Guerra. O foco social debruça-se mais sobre a aristocracia em Downton Abbey , e exclusivamente sobre esta em Brideshead. Finalmente somos acolhidos por bandas-sonoras igualmente magnéticas, com qualquer coisa de elegíaco, em ambos os exemplos.
As equivalências terminam aqui uma vez que a matriz de Brideshead é ainda literária, ao passo que a "pluma" ágil de Julian Fellowes, que tudo comanda em Downton Abbey, apela às sensibilidades sofisticadas que apreciem um processo narrativo telenovelesco. Reconheça-se o efeito viciante de Downton Abbey. O maniqueísmo da distribuição de trunfos entre personagens que se afiguram à partida como sendo boas ou más. E o factor mais irresistível da série, e também o mais utópico, que tem por base as figuras moralmente mais fortes. Em Downton Abbey faz-se quase sempre justiça, penalizando os conspiradores e absolvendo as vítimas de intrigas.
Há uma rocha chamada Mr. Bates (Brendan Coyle), criado particular do duque de Grantham (Hugh Bonneville) que gere o património de Downton Abbey, que enfrenta com estoicismo as suspeitas e ciladas dirigidas ao seu carácter. Em minha opinião ele impera sobre Downton Abbey e relega para segundo plano as facilidades dramatúrgicas que são produto de uma destreza narrativa demasiado deste nosso século.

5.14.2012

Uma escolha moral

À primeira vista.

Dark shadows

5.11.2012

Não é o Op Art, é São Francisco!


















Não é à toa que Judd Apatow cita Hal Ashby  cineasta em voga nos anos 70, que de alguma forma se eclipsou na década seguinte  como uma das suas principais influências. E as comédias produzidas por Apatow não diferem muito dos filmes por si dirigidos. Adultos que se portam como adolescescentes (sobretudo quando se trata do amor) e que se expõem com frequência ao ridículo. Situações que ampliam os equívocos das relações humanas. Filmes como The Five-Year Engagement (recuso-me a citar a tradução idiota para português), da mesma dupla, Nicholas Stoller e Jason Segel, que esteve na origem dos razoavelmente divertidos Forgetting Sarah Marshall e Get Him to the Greek (traduções escusadas também nestes dois casos), vêem-se com um tímido sorriso e um nó no estômago. E estão a ficar mais densos em termos dramáticos e a mostrar aquela capacidade rara que o cinema foi buscar à literatura, de dar a sentir o modo como o tempo passa e modifica os sentimentos amorosos. Isto existia nos filmes de Ashby, que devia ter algures a sua biblioteca.

Ninguém fala mais como Barnabas Collins!






































Um Tim Burton a meio-gás e o gás foi todo para a homenagem que Dark Shadows presta aos filmes da Hammer. Johnny Depp simplesmente extraordinário (indeed, INDEED).

5.10.2012

Indeed

Stevie Nicks alta definição

5.09.2012

Livros do desassossego

























«Eram detalhes da Dublin real, ou simplesmente pareciam verdadeiros por causa da inigualável intensidade do sonho? Quando despertou, continuava sem saber nada de Dublin, mas tinha a estranha certeza absoluta de ter andado a passear pelas ruas dessa cidade durante longo tempo, e era-lhe impossível esquecer o único momento difícil do sonho, aquele em que a realidade se tornava singular e comovente: o instante em que a sua mulher descobria que ele tinha voltado a beber, ali, num bar de Dublin. Tratava-se de um momento duro, intenso como nenhum outro dentro daquele sonho. À saída do pub Coxwold, surpreendido por Celia na sua indesejada nova incursão alcoólica, abraçava-se a ela comovido e acabavam os dois a chorar, sentados no chão de um passeio de uma ruela de Dublin. Lágrimas para a situação mais desconsolada que até àquele dia tinha vivido num sonho.»


Para os que, como eu, nunca foram a Dublin.

Filmar tudo não basta




















A intenção de tudo filmar, Gonçalo Tocha (imagem) e Dídio Pestana (som) encarregam-se de tornar bem expressa por sobre os momentos iniciais de É na Terra Não é na Lua, trabalho de quatro anos (2007-2011) a quatro mãos que faz antecipar um ponto de vista partilhado, que a montagem final trai ao ceder a uma lógica de acumulação, que substitui ao encontro dos elementos da "equipa" com o que constitui a experiência de habitar e conhecer a ilha do Corvo (Açores), uma catalogação de factos e personagens. De notar também que a experiência de assistir a este documentário deixa de ser sobretudo da ordem do sensorial para se passar à inventariação de histórias e usos apresentados de forma não hierarquizada. Há mesmo situações que apenas servem de pontos de passagem para outros pontos de passagem, sem que se perceba do que é mostrado o que mais tocou as sensibilidades de Tocha e Pestana. O resultado global não deixa de ser positivo e Gonçalo Tocha "revela-se" um excelente operador de câmera. O Corvo um lugar suficientemente exíguo e exótico para manter desperto o interesse de quem vê o documentário, apesar da excessiva duração onde de novo não descortinamos forte propósito. Um bom trabalho. Pena que se tenha perdido o ponto de vista, tão mais necessário quanto filmar tudo não deve ser entendido com fazer equivaler tudo com tudo.

Sublinhados das primeiras 100 páginas

























«Fala-se de mais sobre amor, sobre como ele deveria ser e não se fala o necessário sobre o que ele efectivamente é.
Existe um abismo entre as nossas práticas e os nossos discursos, entre a obrigação da euforia oficial e a constatação do grande sofrimento vivido. O estereótipo dominante faz-me pensar que o amor saiu vitorioso, mas o aumento do aparecimento no mercado de livros, de receitas sobre a felicidade conjugal, leva-me a supor que a realidade não é menos difícil de viver do que antigamente.» (p. 33)

«O sonho ingénuo do amante: fazer com que os outros que o precederam sejam esquecidos, relegar para o estatuto de rascunhos dos quais ele seria a versão final.»
(p. 35)

«Cortejar, é antes de mais dar ares, votar-se ao embelezamento de si próprio.» (p. 45)

«Assolar com a dúvida toda a forma de aprovação é uma forma de ter o ser humano sempre cativo, submetido.» (p. 47)

«Amar-te-ei sempre: a expressão compromete aquele que a pronuncia no preciso momento em que este a diz. Este "sempre" é um outro tempo no tempo quotidiano: eu ajo como se fosse amar-te para sempre, apesar de não estar no meu poder controlar a transformação dos meus sentimentos. O homem da minha vida, a mulher da minha vida: mas é uma vida entre múltiplos fados por que passamos ao longo de uma existência. O juramento tem a ver com a confiança e com a aposta: saltando por cima da dúvida e do medo, ele postula que o mundo é um lugar onde é possível crescermos juntos e sentirmo-nos seguros de nós próprios. Mas ao conjurar o acaso, ele também coloca os amantes perante a mesma insegurança. transforma-os em assassinos potenciais um do outro. Ao confessar a minha ansiedade interior, fico à mercê de um déspota tão fantasioso quanto encantador que pode empurrar-me, de um dia para o outro, para o abismo de onde me tinha tirado. Entrei num mundo de alto risco, onde a catástrofe pode assolar-me a qualquer momento. O outro deixa de me telefonar? Sinto-me perdido. Estou tranquilo? Eis que ele me larga sem outras justificações. O escritor italiano Erri De Luca conta que, quando era estudante na Universidade, adoeceu. Ao tremer de febre, recebeu a visita da sua namorada que começou por o aquecer e por fazer amor com ele de uma maneira tão magnífica que ele sentiu que estava no céu. Após o que, muito calmamente. lhe comunicou que se iriam separar. Aquele momento não era uma apoteose, era um adeus.» (p. 59 e 60)

«O que há de mais emocionante do que o reflexo do prazer no rosto do amado quando ele arde de tanto prazer?» (p. 65)

«O que fere não é a indiferença dos estranhos, é a frieza dos que nos são próximos ou melhor o seu calor inconstante. Acreditamos que estamos a apertá-los de encontro ao nosso coração, e abraçamos uma ausência. Desconfiamos com razão dos juramentos feitos por meio de um abraço, como se fazer amor nos impedisse de falar de amor: quando a carne está em êxtase a língua divaga naturalmente e faz promessas com ligeireza. Mas o contrário também acontece: é no tumulto dos sentidos que o tímido consegue fazer fluir a sua eloquência sem recear cair no ridículo.» (p. 66)

«Amo-te: deves-me o teu afecto, se possível a centuplicar. O amor acede à linguagem sob a forma comercial: abre-se uma conta, onde os papéis de credor e devedor estão permanentemente a serem trocados. Logo que um deles, ao fazer o balanço, ache que foi vigarizado, o equilíbrio quebra-se.» (p. 67)

«A sexualidade duradoura é uma das utopias mais patéticas do mundo moderno; e a erosão do desejo é o seu aspecto trágico mesmo quando o encaramos como uma chama sagrada. Que duas pessoas que não podiam estar sozinhas mais de cinco minutos numa sala sem se atirarem uma para cima da outra acabem por coabitar mais tarde na calma dos sentidos durante anos, com excepção de breves entreactos, tem algo de pungente. A tentativa de se manter nas altas esferas do excesso sensual continuará a ser uma das páginas mais comoventes do amor ocidental. A castidade, por esgotamento dos apetites, é mais eficaz do que a repressão. Ela prova aqui uma vez mais a nossa impotência para dominarmos a "biologia das paixões" (Jean-Didier Vincent).» (p. 87)

«O crescimento vertiginoso da percentagem de divórcios na Europa não resulta como se diz do nosso egoísmo mas do nosso idealismo: a impossibilidade de viver juntos associada à dificuldade de ficar só. Os casais modernos separam-se não devido à decepção, mas porque se têm em grande conta.» (p. 87 e 88)

«A vida de casal é uma causa tão válida como a libertinagem, é a forma contingente que os nossos afectos assumem em dado momento da nossa existência. A verdadeira novidade da época é o facto de já não termos de escolher entre imposições insustentáveis e podermos acumular ao longo de uma vida casamento, celibato e aventuras.» (p. 94)

«Não somos heróis nem santos, mas simples seres humanos com uma capacidade limitada de dedicação.» (p. 94)

«A genitália é ainda vista como metáfora do corpo feminino, toma-se a parte pelo todo. O homem tem um sexo, a mulher é o seu sexo. Dá-lo é, para ela, perder-se. Um século depois de Freud, muitos não cedem neste preconceito arcaico. Tudo se resume a isso.» (p. 101)

5.08.2012

Sinto-me... remasterizado

A última encomenda

No Verão do ano passado a publicação brasileira Dicta & Contradicta pediu-me um texto para a edição deles em papel, sobre um filme importante que estreasse no Brasil no último trimestre de 2011. Arranjei um assunto importante, um filme com interesse, e o texto ficou assim:




















O último dos clássicos são afinal dois

É comum ouvir falar de cada vez que estreia um filme de Clint Eastwood (n. 1930) que estamos na presença do último dos clássicos, querendo isto dizer que a sua obra se liga a uma tradição cultural e cinematográfica de que é único representante activo. Tal afirmação é acima de tudo injusta para alguém como Robert Redford (n. 1936), cuja obra na realização não tem seguramente o relevo da de Eastwood (muito menos a extensão desta), mas cujas diferenças de imediato se atenuam quando comparadas as filmografias de ambos, elemento decisivo para os inscrever em tradições contíguas com elementos comuns.
Vem isto a propósito do novo filme de Robert Redford, The Conspirator/ Conspiração Americana, que se inicia com o homicídio de Abraham Lincoln (1809-1965), figura maior de um dos momentos mais conturbados da história da América, e seu primeiro presidente assassinado. A narrativa de The Conspirator prolonga-se pelo julgamento e condenação à morte de Mary Surratt (que tem em Robin Wright uma presença feita de beleza e dignidade que quase “cegam”), sublinhando uma vez mais que esta é uma história de primeiras vezes, ou seja, da perda da inocência da América idealizada nas belas páginas da sua Constituição (1787) cuja História do país por vezes violou. The Conspirator é uma obra que se inscreve em duas tradições, já não contíguas embora decorrentes uma da outra: o cinema a filmar a História; sobretudo o cinema a revisitar uma das suas personagens mais populares (ainda que de raspão: Lincoln passa aqui rapidamente de silhueta a cadáver) e um tempo definidor. Quando John Ford, em 1939, filmou o jovem Lincoln interpretado por Henry Fonda, era possível deixar o filme impregnar-se dos ideais e de uma certa candura próprias do então advogado e futuro presidente. E quando décadas antes, em 1915, D.W. Griffith abordou o assassinato de Lincoln (a quem dedicaria todo um outro filme) em The Birth of a Nation/ O Nascimento de uma Nação, num fluxo de eventos rematado com um “last minute rescue”, ninguém reclamaria do recurso a tal dispositivo e ao simbolismo que representava na glorificação da grande história. Há um século de diferença entre os filmes de Griffith e de Redford, e só faz sentido regressar a Lincoln para extrair da pequena história, dos seus agentes e factos, a sensação do muito que se repete e da dúvida para sempre instalada.
O que começou por interessar Robert Redford foi o facto de poucos saberem quem tinha sido Mary Surratt (a primeira mulher mandada executar pelo governo dos Estados Unidos), e também nunca ter sido apurada em definitivo a sua culpabilidade. A versão de Redford, apoiada no argumento de James Solomon, aponta para aquilo que o secretário de guerra de Lincoln (um quase irreconhecível e sinistro Kevin Kline) refere por “inter arma silent leges”. A sequência dos acontecimentos filmados implica um recolhimento da justiça por se tratar de tempos de guerra (Guerra da Secessão, 1861-1865, que se encaminhava para o fim). O modo como os episódios narrados pode reflectir acontecimentos do tempo actual diz da dimensão do fosso escavado pelos actos dos homens na concepção idealizada que fazem da própria espécie e que a Constituição dos Estados Unidos encerra. É muito elucidativo que Robert Redford termine o seu filme dando conta que o protagonista, o advogado que defenderá Mary Surratt (Frederick Aiken, vivido pelo actor James McAvoy), um herói da guerra pelo exército do Norte regressado à profissão que tinha, abandonará a justiça para dirigir o Washington Post. É a forma do realizador nos (voltar a) mostrar que o heroísmo passaria dos campos de batalha para os jornais, no que no caso de Redford, que se notabilizou ao interpretar Bob Woodward, um dos profissionais do Post que expuseram o escândalo Watergate, no filme de Alan J. Pakula, All the President’s Men/ Todos os Homens do Presidente (1976), é tanto mais significativo.
O raciocínio traz-nos de volta à questão de se ser ou não um clássico, ao que implica sê-lo, o reconhecimento de se sentir integrado numa tradição (Sydney Pollack e Pakula estarão para Redford assim como Don Siegel e Sergio Leone para Clint Eastwood), a questão de dar disso prova nos filmes realizados, e a certa altura indiciar uma passagem do testemunho que fica a cargo dos actores escolhidos das gerações seguintes, alguns de entre eles que poderão assumir outras responsabilidades (produção, realização) que de igual modo perpetuem o legado. Essa tarefa Robert Redford vem desempenhando não só nos filmes que dirige, mas até com acrescida influência no Sundance Institute a que preside e fundou, onde são desenvolvidos projectos de cinema, por intermédio do qual se realiza todos os anos um festival de filmes “independentes” (são diversos os graus de independência), e ao qual pertence um canal de televisão por cabo. Isto é ser-se clássico nunca deixando de ser contemporâneo.

5.07.2012

Cantada














Fotografias de Vincent Rossell.

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