5.08.2012

A última encomenda

No Verão do ano passado a publicação brasileira Dicta & Contradicta pediu-me um texto para a edição deles em papel, sobre um filme importante que estreasse no Brasil no último trimestre de 2011. Arranjei um assunto importante, um filme com interesse, e o texto ficou assim:




















O último dos clássicos são afinal dois

É comum ouvir falar de cada vez que estreia um filme de Clint Eastwood (n. 1930) que estamos na presença do último dos clássicos, querendo isto dizer que a sua obra se liga a uma tradição cultural e cinematográfica de que é único representante activo. Tal afirmação é acima de tudo injusta para alguém como Robert Redford (n. 1936), cuja obra na realização não tem seguramente o relevo da de Eastwood (muito menos a extensão desta), mas cujas diferenças de imediato se atenuam quando comparadas as filmografias de ambos, elemento decisivo para os inscrever em tradições contíguas com elementos comuns.
Vem isto a propósito do novo filme de Robert Redford, The Conspirator/ Conspiração Americana, que se inicia com o homicídio de Abraham Lincoln (1809-1965), figura maior de um dos momentos mais conturbados da história da América, e seu primeiro presidente assassinado. A narrativa de The Conspirator prolonga-se pelo julgamento e condenação à morte de Mary Surratt (que tem em Robin Wright uma presença feita de beleza e dignidade que quase “cegam”), sublinhando uma vez mais que esta é uma história de primeiras vezes, ou seja, da perda da inocência da América idealizada nas belas páginas da sua Constituição (1787) cuja História do país por vezes violou. The Conspirator é uma obra que se inscreve em duas tradições, já não contíguas embora decorrentes uma da outra: o cinema a filmar a História; sobretudo o cinema a revisitar uma das suas personagens mais populares (ainda que de raspão: Lincoln passa aqui rapidamente de silhueta a cadáver) e um tempo definidor. Quando John Ford, em 1939, filmou o jovem Lincoln interpretado por Henry Fonda, era possível deixar o filme impregnar-se dos ideais e de uma certa candura próprias do então advogado e futuro presidente. E quando décadas antes, em 1915, D.W. Griffith abordou o assassinato de Lincoln (a quem dedicaria todo um outro filme) em The Birth of a Nation/ O Nascimento de uma Nação, num fluxo de eventos rematado com um “last minute rescue”, ninguém reclamaria do recurso a tal dispositivo e ao simbolismo que representava na glorificação da grande história. Há um século de diferença entre os filmes de Griffith e de Redford, e só faz sentido regressar a Lincoln para extrair da pequena história, dos seus agentes e factos, a sensação do muito que se repete e da dúvida para sempre instalada.
O que começou por interessar Robert Redford foi o facto de poucos saberem quem tinha sido Mary Surratt (a primeira mulher mandada executar pelo governo dos Estados Unidos), e também nunca ter sido apurada em definitivo a sua culpabilidade. A versão de Redford, apoiada no argumento de James Solomon, aponta para aquilo que o secretário de guerra de Lincoln (um quase irreconhecível e sinistro Kevin Kline) refere por “inter arma silent leges”. A sequência dos acontecimentos filmados implica um recolhimento da justiça por se tratar de tempos de guerra (Guerra da Secessão, 1861-1865, que se encaminhava para o fim). O modo como os episódios narrados pode reflectir acontecimentos do tempo actual diz da dimensão do fosso escavado pelos actos dos homens na concepção idealizada que fazem da própria espécie e que a Constituição dos Estados Unidos encerra. É muito elucidativo que Robert Redford termine o seu filme dando conta que o protagonista, o advogado que defenderá Mary Surratt (Frederick Aiken, vivido pelo actor James McAvoy), um herói da guerra pelo exército do Norte regressado à profissão que tinha, abandonará a justiça para dirigir o Washington Post. É a forma do realizador nos (voltar a) mostrar que o heroísmo passaria dos campos de batalha para os jornais, no que no caso de Redford, que se notabilizou ao interpretar Bob Woodward, um dos profissionais do Post que expuseram o escândalo Watergate, no filme de Alan J. Pakula, All the President’s Men/ Todos os Homens do Presidente (1976), é tanto mais significativo.
O raciocínio traz-nos de volta à questão de se ser ou não um clássico, ao que implica sê-lo, o reconhecimento de se sentir integrado numa tradição (Sydney Pollack e Pakula estarão para Redford assim como Don Siegel e Sergio Leone para Clint Eastwood), a questão de dar disso prova nos filmes realizados, e a certa altura indiciar uma passagem do testemunho que fica a cargo dos actores escolhidos das gerações seguintes, alguns de entre eles que poderão assumir outras responsabilidades (produção, realização) que de igual modo perpetuem o legado. Essa tarefa Robert Redford vem desempenhando não só nos filmes que dirige, mas até com acrescida influência no Sundance Institute a que preside e fundou, onde são desenvolvidos projectos de cinema, por intermédio do qual se realiza todos os anos um festival de filmes “independentes” (são diversos os graus de independência), e ao qual pertence um canal de televisão por cabo. Isto é ser-se clássico nunca deixando de ser contemporâneo.

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