9.06.2010

O que vem à superfície


















Um dos aspectos interessantes de aceder aos Extras de alguns DVD's é perceber o que determinado objecto podia ter sido em confronto com o resultado final. O caso de Open Water/ Em Águas Profundas (2003) é estimulante e esclarecedor. O filme informa-nos de início que se baseia em factos reais. Como sabemos que a história trata de um casal que estando de férias é esquecido acidentalmente no mar alto no decorrer de uma saída de mergulho, a expectativa natural é de que alguém (ou ambos) tenha sobrevivido para contar como tudo aconteceu. Um genérico alternativo, montado pelo realizador Chris Kentis e disponível nos Extras, mostra parte do equipamento de mergulho que dá a uma praia, indício de que o desenlace terá sido trágico. A opção por retirar este elemento da versão final permite que o espectador siga o drama de Susan e Daniel "em tempo real", acreditando e duvidando em simultâneo da sua sobrevivência.
Com toda a promoção a assentar no confronto da vulnerabilidade do homem face a um contexto que necessariamente não lhe é natural, acrescentado do cerco de tubarões que sobre ele investem de forma menos ou mais violenta, era de esperar que se fosse assistir a um filme de suspense, elemento que Open Water capitaliza de maneira nada despicienda. Mas o tema real do filme é outro. A relação do casal é o aspecto mais interessante, o verdadeiro núcleo da acção e aquilo que faz de Open Water uma variação clássica do filme de aventuras em meio hostil.
Recordarei sempre uma cena de sexo de Don't Look Now (1973) de Nicholas Roeg, que tornada a ver muitos anos depois empalidecera na sua aura, protagonizada por Donald Sutherland e Julie Christie, com base na erotização dada ao uso de um dentífrico. Desconheço se tal cena terá servido de inspiração a Chris Kentis, que ainda nos Extras menciona ter procurado fazer um filme que obedecesse aos pressupostos do manifesto Dogma 95 de Lars von Trier & Associados. No entanto a cena que mostra o casal na intimidade que antecede o sono (substituindo o dentífrico por um creme de rosto), na noite prévia à partida para o exercício de mergulho, é o momento mais extraordinário do filme. Regista com o mesmo realismo "caseiro" a justeza dos corpos que serve o desencontro (ele quer, ela diz estar cansada...) a que mais tarde, com o par já perdido na imensidão das águas, se acrescentarão outros indicadores dramáticos. A apreciação das zonas de luz e sombra que algum cinema contemporâneo continua a fazer baixar sobre as relações homem-mulher ganha em considerar este Open Water, que tem vários créditos a juntar à sua identidade de série B.

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