9.03.2010
My fair lady
É atribuída a Godard a seguinte formulação: "o cinema substitui ao olhar um mundo que passa a estar de acordo com os nossos desejos". Não subestimemos a força do desejo, pois pode até fazer sentir a presença de telemóveis onde não se acreditava que existissem antes… Quando o trágico professor de filosofia François Hainaut (grande Bruno Cremer) experimenta a angustia da separação da ninfeta sua aluna Mathilde (Vanessa Paradis), recebe a dada altura um telefonema desta que lhe pede que se dirija para a frente da casa. É coisa de segundos e François habita um local isolado, mas logo Mathilde lhe surge e se lhe atira de braços abertos. O desejo significa também aqui o poder do inconsciente, tema que é objecto de discussão entre o professor e a turma e que preenche algumas cenas do filme. O inconsciente operava já nesta altura (Noce Blanche é de 1989) no cinema de Jean-Claude Brisseau. A ele se devem as liberdades futuramente mais poéticas do autor. É território virgem que a realidade constrange e pune. Mas enquanto tal não acontece, entregamo-nos à volúpia do mistério.
Casamento branco (Noce Blanche) diz-se daquele que não é consumado pelo sexo. O filme de Brisseau deixa por um lado esse dado implícito (nunca assistimos à sugestão do sexo entre o professor e a mulher, ao passo que a ligação a Mathilde também decorre da carnalidade associada a um corpo jovem). Noutro sentido é mais provável que o título aluda à relação de François e Mathilde, à pureza de um sentimento ditado pelo inconsciente dele que a realidade dos factos tornará sombrio. O espectador atento guarda desde início a devida distância em relação à paixão de François de cujo objecto, somos informados "en passant", já havia atirado para a depressão um outro professor. E os indícios que Brisseau fornece não ficam por aqui. O próprio rosto de Paradis, muito pálido no começo, com aquela separação dos dentes da frente que ajudou à fama, tem qualquer coisa de perverso: dita-o uma vez mais o (nosso) inconsciente.
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