10.12.2010
Um Téchiné
É possível que os últimos grandes filmes de André Téchiné tenham sido aqueles que, na década de 90, tinham por dupla de protagonistas Catherine Deneuve e Daniel Auteuil: refiro-me a Ma Saison Préférée (1993) e a Les Voleurs (1996). Em todo o caso, um Téchiné onde reconheçamos o cinema do autor, André Téchiné, é já um objecto significativamente relevante, nos maiores e menores gestos. Dou um exemplo de cada partindo do seu mais recente filme, La Fille do RER * (2009). Trata-se de uma jovem que habita os subúrbios de Paris, onde vive com a sua mãe (o constante regresso de Deneuve ao cinema de Téchiné). Retrato de mulher quase adulta, que adia assumir o seu papel no mundo com receio de que seja pouco. Como a própria diz, de que "não seja amada". Surge um rapaz que se interessa por ela e quando os dois começam a comunicar pela Internet, e com o recurso a uma webcam, há um momento particularmente luminoso, talvez o primeiro deste filme, que passo a descrever. Uma cena banalíssima que se transforma quando Téchiné abandona o recurso (algo pop) de nos dar a ver o que os jovens escrevem, impresso no ecrã de cinema em letras coloridas de diferentes tamanhos, para a comunicação passar a fazer-se exclusiva e demoradamente através dos rostos de ambos, o que origina belos instantes de suspensão erótica que dependem desse detalhe apenas (o facto de o espectador fazer prolongar aquilo que deixou de ler na tela e que passou a mover-se de acordo com a sua imaginação).
O grande gesto que também ele resulta bastante significativo neste filme de Téchiné, encontramo-lo próximo do final. A jovem protagonista (e é mesmo Émilie Dequenne, a Rosetta dos irmãos Dardenne) em perda, virá a tirar perverso partido da tensão gerada na sociedade francesa com o aumento dos índices de violência dirigida às minorias religiosas, para se dizer ela própria vítima de um ataque anti-semita, que fabricara na sua cabeça e que marcara no seu corpo. Após confessar-se culpada da mentira, Jeanne irá permanecer a noite numa cela de polícia de paredes tão "anónimas" quanto ela se sente, e completamente sozinha. André Téchiné monta esta cena, em paralelo, com a eloquente cerimónia do Bar Mitzvá que assinala a entrada na idade adulta de um outro jovem do seu filme. Agora sem sequer recorrer a uma única palavra, Téchiné parece avançar com a chave de leitura de La Fille du RER (sigla que designa o comboio que cruza Paris na direcção dos subúrbios).
É pelos rituais familiares, religiosos e culturais que o Homem adquire um sentido de pertença, e à falta de melhores processos de construção da identidade mais ou menos individualizada, talvez seja inteligente reconhecer-lhes valor. Aquilo que somos começa sempre de onde é que vimos, e quando fugimos a esta evidência, de tanto lhe fugirmos, é a ela que de novo vamos dar. La Fille du RER só podia ter a assinatura de André Téchiné.
* repete amanhã às 22h00 na Cinemateca.
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