6.02.2010

Os bons espíritos















A questão da crença no confronto com as imagens em movimento é algo que nos deve interrogar desde os primórdios do cinema. Pode-se dizer que o estímulo óptico novo era mais preponderante nos primeiros espectadores sobressaltados com a "chegada do comboio" que parecia vir na direcção deles, mas mesmo que inconscientemente havia já ali uma forte impressão de realidade a contribuir para o sortilégio do espectáculo.
Quando Jean-Claude Brisseau filma no início da década de 90 a história de Céline, depois de Cocteau, de Dreyer, de Hitchcock, de Buñuel ou de Bresson, a questão ontológica da fé aplicada à imagem cinematográfica, à representação do milagre em sentido literal, só pode ser equacionada por via do descondicionamento do trabalho do espectador e pela disponibilidade intelectual para aceitar a representação do inefável.















Brisseau filma a história de uma rapariga privilegiada que "nasce" de novo aos 22 anos, depois de ter considerado tudo haver perdido. A sua convalescência irá ser acompanhada por uma enfermeira de província que inicia a jovem na meditação, na prática do yôga e na entrega dos seus cuidados a outros (na compaixão). A desidentificação de Céline (Isabelle Pasco) com o seu ego será de tal ordem que chega a atingir estados de transe místico que mais tarde a levarão a optar por uma vida totalmente dedicada à espiritualidade.
Isto considerado, há que acrescentar que Céline não podia ser mais distinto do que usamos entender por hagiografia. Existe um grande desassombro (realista) no modo como Jean-Claude Brisseau regista os momentos em que as faculdades de Céline se manifestam, e num plano tangível o filme trata da relação entre duas mulheres (uma história de amor sem corpos/desejo) e da transmutação da força de uma na outra. Céline é ainda observado à distância pela figura da morte que sobre ele paira, sendo também um filme cercado de vida: a começar no cenário campestre onde Brisseau decidiu situar a acção, e na utilização ponderada da música do enorme Georges Delerue.















Com Jean-Claude Brisseau o cinema torna-se uma arte livre e poética, bela e utópica. Para acreditarmos temos de olhar as coisas como ele as filma. De frente. E aceitar que aquilo que vemos possa ser o que vemos e algo que é também outra coisa. Porque o pensamos e porque o sentimos.

Arquivo do blogue