3.31.2010
3.30.2010
Amanhã 3ª sessão NOGO.kino (entrada livre)
FERNANDA FRAGATEIRO - LUGARES PERFEITOS
Portugal, 2003, 52'
Produção, argumento e montagem: Luís Alves de Matos
Amatar Filmes/ Culturgest (co-produtor)
Sinopse: LUGARES PERFEITOS é um documentário sobre o trabalho da artista plástica Fernanda Fragateiro, mostrando a sua intervenção em espaços públicos, no desenho de paisagens ideais e de esculturas. Um jardim que se torna refúgio, um pátio em forma de espelho interior, o desenho como linha de pensamento, são pequenos lugares de resistência. No diálogo destas formas com o espaço social, a arte encontra a natureza num jogo de reflexos.
NOGO.kino acontece AQUI.
3.29.2010
Évora 2010
3.27.2010
Don't believe the hype*
Encontrei o Alberto Gonçalves primeiro pelo que escrevia na blogosfera (e no Correio da Manhã) e anos depois ficámos amigos. O Alberto deixou o Homem a Dias em pousio e não tem pachorra para enviar um boletim com os seus textos, e apenas isso explica que só agora me tenha apercebido da polémica suscitada pela crónica sobre a morte de MC Snake e sobre o hip hop. Uma polémica onde conheço pessoas em ambos os lados, sendo que um deles é ocupado apenas pelo Alberto (ainda não li ninguém a corroborar a opinião veiculada na sua crónica). Penso que os ataques a Alberto Gonçalves respondem numa medida que os outros consideram proporcional. Penso ainda que o interesse que a pessoa de Alberto Gonçalves lhes suscita (claramente expresso na formulação de Rodrigo Nogueira, quando escreve: "O mundo de Alberto Gonçalves é um mundo onde eu não quero, de todo, viver.") é, esse sim, proporcional ao interesse que Alberto Gonçalves tem pelo hip hop e a cultura que lhe está subjacente. Penso, finalmente, que as pessoas deviam poupar-se a escrever sobre o que não lhes interessa. O desinteresse traz ao de cima o preconceito. São precisas boas doses de humor ou ironia para se ler um texto preconceituoso com interesse, coisa que esteve ausente da polémica nos dois lados. Eu que conheço parte do mundo de Alberto Gonçalves, posso afirmar que quero lá voltar outras vezes. Eu que regressei ontem (mera coincidência) a este disco dos Public Enemy, posso garantir que a música não perdeu um grama da pujança original. Eu que sou judeu, mestiço e tatuado.
* I'm not a hooligan
I rock the party and
Clear all the madness
3.26.2010
3.24.2010
Sexy Beast
Vamos começar com uma fórmula. Muitos cinéfilos gostam de fórmulas. Eu gosto de fórmulas. Sexy Beast (2000), obra de estreia de Jonathan Glazer, realizador já aqui por mim elogiado a propósito do seu segundo filme, Birth (2004), pode ser antecipado como o cruzamento de Donnie Darko (2001) com o último Jim Jarmusch, The Limits of Control (2009). As terras de Espanha, que para nos pouparmos a esforços vêm exercendo fascínio sobre "tough guys" pelo menos desde a atracção de Hemingway por touradas, assumem no filme de Glazer o lugar do possível paraíso segundo parâmetros dos gangsters na reforma que para lá se mudaram com as respectivas mulheres. A villa junto ao mar pertence a Gary "Gal" Dove (Ray Winstone), que no início quase que é esmagado por um pedregulho que se aloja no fundo da piscina. O calhau gigante, incrustado entre dois corações, o de Gal e o de Deedee, funciona como prenúncio da chegada de Don Logan (Ben Kingsley, numa muito interessante inversão de papéis: como se Kingsley fizesse o que esperaríamos de Winstone e vice-versa), que vem recrutar os serviços de Gal para um último assalto e que está pronto a coagi-lo com o que tiver de ser para que este suspenda a existência idílica à torreira do sol.
Sexy Beast é estilizado como um filme dos Coen e faz também lembrar o neo-noir de Soderbergh de 1999, chamado The Limey (que por sua vez remete para The Hit (1984) de Stephen Frears, cuja acção se passava algures em Espanha). Feito o varrimento sumário pela genealogia, é finalmente Guy Ritchie quem sai pela porta pequena. É que Jonathan Glazer, apesar dos indícios de deslumbramento com o potencial expressivo do cinema versus o tom pessoal que melhor serve cada cena, algures entre Tarantino e a sua versão empobrecida pela filmografia de Ritchie, tem logo no primeiro filme um sentido apurado de criação de atmosferas e de instantes inesperados que imprimem a Sexy Beast um cunho individual embora rapsódico. O filme não se esgota no brilhantismo formal. Tem dois protagonistas, Gal e Don, que subvertem o estereótipo da fisionomia, e à medida que a acção se encaminha para o inevitável golpe outras motivações, como o amor, ganham relevo.
Quando um coelho com corpo de homem se dirige montado num burro e empunhando uma metralhadora na direcção de Gal, não conseguimos deixar de conceber esta figura de gangster aposentado como a versão alternativa de Dom Quixote para quem os moinhos da fortuna andarão à roda uma derradeira vez.
3.23.2010
Sam Shepard
[...] I speak to Patti Smith on the phone and ask her what her impression was of Sam Shepard the first time she met him back in 1970 (shortly before they began an affair), and it's the first thing she says too: "He was just everything that one could want. He was – still is – a very handsome man. And he had this animal magnetism. It was almost visceral. He was so high energy and had a real glint in his eyes. He was born for rock'n'roll. [...]
[...] a recurring theme in his work, is bound up with the relationship he had with his alcoholic, abusive father. [...] In Fool for Love, written almost three decades ago, the main character is haunted by the chilling possibility that he is turning into his father. Back then it was a fear; now, he says, it has become a fact.
"You think about it, you talk about it, analyse it, and then all of a sudden you have become the thing that you were most vehement against. It's very Greek. They invented this shit. Or at least gave it a name."
He's been sober, he says, since the drink-driving incident a year ago. [...]
[...] In Shepard's world, romantic love as the meeting of two souls and the family as the nurturing heart of American life are nothing but delusions. "They're wonderful retreats from the illusion of being protected from spinning off the planet. But I don't believe it. And I never did."
So you didn't celebrate Valentine's Day then?
"Oh yes. We just did. I bought her a couple of bottles of wine. I don't drink."
It's not the most romantic gift, I say.
"They were two really good bottles of wine. Really good ones. Oh, and a tape measure. Because she was putting up a painting." [...]
[...] There's a couple of great quotes from Jessica about you, I say.
"Is there? My God. What? Actually, no. Just give me the good ones."
She said: "No man I've ever met compares to Sam in terms of maleness." [...]
Sam Shepard opens up, Carole Cadwalladr, The Observer, 21.03.2010
3.22.2010
Amas-de-leite
foto: Clara Azevedo.
[...]
Quando precisa, vai às putas? Tem uma mulher, várias mulheres? Como é que resolve essa parte?
Todos nós, portugueses, vamos às putas de vez em quando. Por alguma razão elas existem. É mais uma daquelas coisas que tentamos pôr debaixo da cama mas que aparecem, sobretudo com uns copitos. E é uma maneira fácil de resolver os problemas conjugais. É mais barato, moralmente, arranjar uma prostituta do que uma amante. Uma amante precisa de ser sustentada, moralmente também.
É carente.
Exacto, é uma pessoa que quer, que tem direitos. Ao passo que uma profissional…
Dá menos trabalho, custa menos dinheiro?
De maneira que as profissionais existem para alguma coisa e infelizmente não são dignificadas como deviam ser. E até acho outra coisa, mas não vou dizer… Acho que também devia haver Mães profissionais, assim como há prostitutas. Há uma agência na Alemanha que tem Mães, pessoas que fazem de conta que são Mães para homens de negócios que se sentem deprimidos. Vi isso no jornal. Prostitutas sentimentais, não sexuais. Alugam esses sentimentos. São amas-de-leite, no fundo.
Só que em vez de dar leite, dão sentimentos.
Também podem dar leite, mas é mais caro.
[...]
Das passagens que apetece citar da entrevista dada por Manuel João Vieira e heterónimos a Anabela Mota Ribeiro, escolhi esta. Vá-se lá saber porquê.
3.20.2010
Dia do Pai
Como muitos saberão, ontem foi Dia do Pai. Por acaso almocei na mesa colada aos lugares onde estavam o senhor J. "Black Label" e o filho. Trato o senhor J. por senhor J. "Black Label" apenas com terceiros comuns e porque ele avia um balão com gelo até acima, mais o precioso néctar, todos os dias após o repasto. O senhor J. é um homem generoso que diariamente paga as refeições do filho (cabidelas e afins) e cujo maior interesse, descobri em conversa, é a geopolítica. O filho do senhor J., também ele J., embora o nome próprio seja outro, estuda Cinema na Escola António Arroio e assemelha-se a um desses jovens de calças a destapar o rego que só têm olhos para o ecrã do telemóvel de última geração: geração monossilábica de cabelo espetado. Entre pai e filho a comunicação é zero vírgula um. E é aí que entro eu. Eu que gostei do senhor J. à primeira vista. Que tenho estima pelos seus olhos etilizados. Que fiquei a saber dos baldes que mandou abaixo na companhia de Torcato Sepúlveda. Que ouvi histórias da boca dele de porradas protagonizadas pelo Cardoso Pires. Da marialvice que o escritou verteu para um livro esgotado que gostava de ler. Quando o senhor J. deixar este mundo; quando eu deixar de o encontrar no nosso restaurante quotidiano, este sítio ficará mais desinteressante. Há filhos que não merecem os pais que têm, e há alguns pais desperdiçados com os filhos que lhes couberam em sorte. É aqui que eu sempre entro.
3.19.2010
Rock de marca
Os White Denim, tomado o pulso ao seu terceiro disco, correm por fora das pistas ocupadas pelos Strokes, White Stripes, Animal Collective e Grizzly Bear, encetando esporádicos recuos até à América de Captain Beefheart ou dos Mothers of Invention. Se chegaram até aqui (até Fits) com um programa de heterogeneidade que não soa a oportunismo, o futuro pode ter para eles as pistas de dentro.
3.18.2010
Monstruário
Acho que é a primeira vez que ao fim de quatro temporadas não me consigo decidir sobre diferenças de qualidade numa série. Oz. é em contínuo um mostruário do pior que os homens podem fazer uns ao outros e a sua perfídia galopante vicía. À conta do vício deve somar-se o facto de não resistirmos a comparar pilas com os corpos expostos que ajudaram a reforçar a imagem de licenciosidade das produções HBO. Na companhia de Oz. as noites são todas de caça e os próprios fizeram questão de o assumir.
3.17.2010
Lourenço Mutarelli
[...] O botequim que serve o pior café da cidade está aberto. Júnior pede um conhaque. Há outro náufrago a dois assentos, bebendo cachaça. Há tanta amargura no rosto dele que Júnior procura puxar papo.
– Dia estranho, não é mesmo?
– Como?
– Dia estranho.
– Todo dia é estranho.
– Não. Hoje... essa névoa... as ruas desertas...
– Pra mim, todo dia é estranho. Eles nunca me convencem.
– Quem não te convence?
– Os dias... são falsos... estranhos... isso não pode ser a realidade... não é possível que seja... isso é... sei lá que porra é isso tudo.
– Talvez...
– Sabe? Eu descobri como funciona esse esquema.
– Ah, é?
– Você já viu aquele planetinha daquele livro do Pequeno Príncipe?
– Sei, acho que me lembro.
O outro faz um gesto com as mãos formando uma esfera no ar.
– É um planetinha, pequeno... Tem uma flor e acho que uma casinha... É assim.
Diz isso projectando a pequena esfera na direção de Júnior.
– Sei, sei...
– É isso, porra! É isso...
– Entendo.
– Entende, nada. Entende?!
O outro faz um gesto de desprezo que desmancha a esfera.
– Eles botaram a gente aqui.
– Claro...
– Deus botou a gente nesse planetinha do caralho. Do caralho do Pequeno Príncipe. Aí ele falou: Meu amigo, tudo isso é seu. Tem ali uma plantinha de merda que dá um fruto gostoso. Ali tem uma vaquinha da bosta que dá leite. E tem trigo pra fazer pão. Até aí tudo bem, não é?
– É tudo o que precisamos...
– É. Mas aí ele mostra um buraco na terra. Um buraco feito uma cova.
– Certo...
– Então ele diz: Tudo isso é seu. E ainda vou te mandar uma mulher e umas crianças... Isso eu acho que é só pra encher o nosso saco e distrair a gente dessa merda toda. Assim não sacamos o esquema, tá ligado?
– E qual é o esquema?
– Posso continuar?
– Claro.
– Então faz favor de não ficar me interrompendo. Bom! Aí Deus explica o esquema. Ele diz: Meu filho, tudo isso é seu. A única coisa que você precisa fazer é tapar aquele buraco. A tal cova que eu te falei.
– Sei.
– Pois então. Cada vez que esse homenzinho tapa a porra do buraco, acaba fazendo outro do mesmo tamanho. Percebe?
– Entendo.
– Então. É isso. É isso sem fim. Tapa um buraco, faz outro igual. Tapa um, faz outro. Até o dia em que o infeliz morre. Só assim você pode tapar o buraco sem fazer outro igual. O buraco é sob medida.
– Legal.
– Porra! Legal, o caralho!
– A história, quis dizer.
– Ou seja, é pau no teu cu. Percebe? É isso. Pra Deus nós somos apenas os que podem tapar o buraco que ele não conseguiu tapar. Entende? É como na obra. Se falta areia, cê não faz parede. Não adianta tijolo, nem cimento. Eu acho que Deus errou nos cálculos. Aí, como já estava de saco cheio, inventou a gente. Tipo umas formigas. Uns formigões. Sacou?
– Tem aquela música que diz mais ou menos isso. Como é mesmo? Ah! – Júnior cantarola: – Essa é a terra que queria ser dividida, é a terra que te cabe nesse latifúndio...
– Não tem nada a ver. Isso é política. Política! E nós estamos falando de religião. Religião!
– Está certo...
– Percebe?
– Claro.
– Uns formigão do cacete!
Júnior termina a bebida. O filósofo não pára mais de falar.
– Bom, meu amigo, eu vou nessa.
– Vai, formigão, vai que vai!
Júnior caminha pela rua nebulosa. [...]
A Arte de Produzir Efeito Sem Causa (Quetzal, 2010), págs. 56/59.
EU PERCEBO DE CINEMA, PERCEBO DE MÚSICA, PERCEBO UM POUCO DE FUTEBOL, PERCEBO POUCO DE LITERATURA. ESTE LIVRO É GENIAL.
3.15.2010
Pequenas coisas
Fracasso e desejo sempre andaram ligados. Sei do que falo. Fracasso (causa) é a forma como achamos que os outros nos vêem. Desejo (efeito) é o modo como olhamos para os outros. Passa-se tudo na nossa cabeça, contabilidade de merceeiro a que os profissionais chamam autoestima. Alguém que ridicularize a autoestima. Alguém que suspeito da leitura das primeiras páginas pode ser o autor deste livro.
Quarto escuro
Era loura. Menos loura do que um dia fora. Os cabelos escureciam. Em proporção aumentava o número de sinais. Cercavam o pescoço claro e desciam pelos flancos até à cintura. Casou com um astrónomo. Ele estudava-a enquanto dormia e só dormia quando ela saía para trabalhar. O homem sonhava com constelações. Um dia o astrónomo cegou. Causa desconhecida. Passou a estudá-la com a ponta dos dedos e só então percebeu. O astrónomo deitava-se com o universo e acordava com o infinito. Tinha encontrado o sentido da sua vida.
Morreu por nós
3.12.2010
Mombojó é demais
foto: Olívia Leite
De Pernambuco para Portugal. Assinala-se hoje → aqui → e agora, a entrada do primeiro disco dos Mombojó nas fronteiras do país irmão. Foi-me recomendado por um brasileiro que chegou a ser manager dos Los Hermanos e mais tarde de Marcelo Camelo. Quando comentei com o Alex o quanto tinha gostado dos Cidadão Instigado, ele respondeu falando nos Mombojó, que junto com a banda de Fernando Catatau ocupa o topo das suas preferências. Mombojó tem tudo a ver. Lembra por um lado o som High Llamas e Stereolab que havia inspirado o grupo de Moreno Veloso, Kassin e Domenico Lancelotti, e revela afinidades com o perfil da Trama, sobretudo presente nos discos de Max de Castro que correm o samba requebrando o balanço com programações electrónicas sem nunca sacrificar o groove e o flow. Está desenhado o mapa de afinidades electivas da melhor música que o Brasil produz actualmente. Os Mombojó, que em breve vão editar o seu terceiro CD, mais que justificam os meus elogios. Nadademais é tudo isto.
[à atenção calorosa desta menina e deste senhor.]
A guitarra e três outras máquinas
Quando o documentário arranca, observamos Jack White que constrói uma espécie de slide guitar a partir de um pedaço tosco de madeira, um fio metálico, uma garrafa de Coca-Cola e um modesto pickup. O som que ele tira da engenhoca é incrível e não mais o filme de Davis Guggenheim consegue atingir-nos com aquele impacto. Jack White pergunta-se e pergunta-nos porque precisamos então de uma guitarra? Segue-se a montagem paralela da deslocação dos três protagonistas para o ponto de encontro. De carro seguem também The Edge e Jimmy Page, e tudo é filmado como se fossemos assistir a um duelo. Só que o suposto duelo transforma-se na troca amigável em estúdio das vivências dos três com os seus instrumentos, e de parte da história das bandas onde estiveram. It Might Get Loud é suficientemente pessoal e dá acesso a algumas obsessões dos indivíduos (a colecção de discos de Page não é menos impressionante que a sua colecção de guitarras). The Edge é o homem dos pedais de efeitos que usa até o som da guitarra se tornar irreconhecível. Jimmy Page é aquele que encerra o estatuto de lenda viva. Mas só Jack White encarna a figura do músico que persegue ainda as raízes do som que o deixou fascinado. O músico dos White Stripes e dos Raconteurs tem um tipo de carisma em estado bruto, que Page embrulhou na sua vasta cabeleira branca e que The Edge, até por questões geográficas e de história pessoal, dificilmente podia testemunhar. E voltamos à tosca slide guitar que faz vibrar a garrafa de Coca-Cola...
Postal do princípio do mundo
Tinha grande curiosidade de ver o derradeiro filme de Michelangelo Antonioni (1912-2007), a curta-metragem The Dangerous Thread of Things inserida no triplo programa Eros (2004), que reúne ainda filmes de Wong Kar-wai e Steven Soderbergh que deixei para depois. Penso que não se lhe pode aplicar a designação desejada de filme-testamento, até porque é sabido que Antonioni trabalhou com franca debilidade física nos últimos anos. Praticamente desde Identificação de uma Mulher (1982), de que guardo excelentes memórias, que o cineasta italiano não filmou na plena posse das suas faculdades. No entanto é interessante olhar para The Dangerous Thread of Things como alegoria do princípio do mundo. Um Adão que se deixa jogar por duas belíssimas Evas (Regina Nemni e Luisa Ranieri). E como são belas as mulheres do filme! Belas, assim de nos roubar o fôlego, estão a perceber? E o cenário escolhido por Antonioni pode assemelhar-se a uma versão actual do Paraíso: uma zona junto ao mar não identificada, com praia, rio e a natureza apropriada para carregar de simbologia as cenas. Antonioni deixa finalmente um aviso aos homens. Não é de hoje que temos vindo a perder as mulheres umas para as outras, mas hoje perdêmo-las como nunca antes. Porque nos amolecem o cérebro com o desejo que despertam em nós, e porque sabem dominar o desejo melhor do que nós. E porque encontram no amor feminino subtilezas a que muitos homens nunca chegam. Estamos perdidos, como se vê. Sempre estivemos perdidos. Resta-nos reviver os dias do princípio do mundo. Do começo da nossa condenação.
3.11.2010
Escandaloso!!!
Uma das potencialidades que esta semana descobri na Internet foi a da automedicação. De busca em busca chegamos a informação deveras pormenorizada, o que nem sempre traz vantagens. Que dizer quando todos os indicadores apontam para que Fantastic Mr. Fox ou O Fantástico Senhor Raposo siga directo para o mercado de DVD? Considero isto um escândalo mesmo tendo em conta a enfermidade que afecta o nosso panorama de distribuição: pequeno, servil e resignado. Como é possível romper a ligação com um dos principais cineastas americanos, um dos últimos verdadeiros originais? Como é possível que nos privem da simpática bonecada servida pelas vozes de Clooney, Meryl Streep, Bill Murray, Michael Gambon, Willem Dafoe, Jarvis Cocker...
Vou só ali considerar a prescrição de um ansiolítico a ver se passa.
Kick Ass American Recordings
Parece-me de total justiça dizer-se que o trabalho de produção de Jack White para Van Lear Rose, de Loretta Lynn, é tão significativo quanto os resultados alcançados pela colaboração prolongada entre Rick Rubin e Johnny Cash. O facto de termos num dos lados apenas um registo e do outro toda uma ilustre discografia repartida por seis álbuns e uma caixa não deve desviar-nos do essencial: sem que se perca a individualidade do som do produtor chega-se à essência da alma de um artista. Van Lear Rose arrasta o country tradicional de Lynn pelo alcatrão do garage rock e a ganga coçada assenta-lhe na perfeição. Até porque as letras de Loretta Lynn contam histórias muito pessoais, em cenário "white trash", que ela revive com as entranhas. Entre a visceralidade da voz da grande senhora (contava 69 anos à data da edição do CD, em Abril de 2004) e aquele estupendo som de guitarra de Jack White "Stripes", o comum mortal não tem escolha. Fica com ambos e assiste ao material a incendiar-se ali perante os seus ouvidos. Van Lear Rose tem faixas que rivalizam com a turbulência catártica de uns Tindersticks e noutras ocasiões atira-se ao espírito blues rock como se não houvesse dia seguinte. Que disco filha da p***! Procurem-no no topo das classificações de sempre do Metacritic que foi onde eu o achei.
Da culpa no coração
Um texto sobre a culpa, aplicada a um caso pobrezinho (aqui), poderá ter influenciado a leitura que fiz da terceira vez que vi Birth. A história do filme, resumida, fala de um par, Anna e Sean, cujo casamento é abruptamente interrompido com a morte deste. Sean reencarna então num recém-nascido que dez anos mais tarde se apresenta a Anna dizendo-se seu marido. Quando a dúvida se instala no coração dela, a música de Alexandre Desplat assinala-a com a representação dos batimentos cardíacos através do som. Além de belíssima, a partitura do francês tem ainda a particularidade de ser tremendamente diegética. Mas regressemos à história. Próximo do final de Birth, Sean descobre que tinha sido infiel a Anna com a mulher do melhor amigo. E então Sean, que desaparecera uma vez da vida dela, ao sofrer o fulminante ataque de coração quando corria no Central Park, volta a abandonar a cena por não suportar a culpa. A culpa que ficara esquecida, guardada em zona remota do inconsciente, é trazida de volta (é clarificada) pelo diálogo de Sean com Clara, mulher de Clifford, que tinha conservado as cartas que Anna escrevera a Sean e que ele lhe dera a guardar como prova (algo perversa) da sua preferência. O que a culpa escondeu a mesma culpa destapa nesta espantosa obra de Jonathan Glazer. O filme estabelece um conflito de forças entre a razão e o coração, tratando os aspectos fantásticos da narrativa num registo cerebral percorrido por uma corrente emocional alimentada pela premissa, pela credulidade crescente de Anna para com um sentimento a que a morte não pôs fim, e pela música de Desplat que considero tão determinante como qualquer um dos protagonistas, na medida em que pontua e comenta os principais acontecimentos. Birth é um objecto para o qual dirigimos o olhar e a escuta, embora a verosimilhança da proposta se decida no nosso coração. O mesmo orgão que carrega a culpa de Sean, que de novo se torna insustentável para ele, impele o espectador para a travessia das emoções que Birth contém. Ou que para os cépticos, não contém.
3.10.2010
3.09.2010
Mujer mujer te quiero
Já tenho o novo CD de Joan Manuel Serrat, o que equivale a dizer que a sua discografia volta a estar preenchida. É por certo coincidência, mas os espanhóis que têm permitido esta performance de completude nunca estão em sintonia com o meu entusiasmo. Primeiro foi um amigo que ao dirigir-se a uma livraria de Barcelona em busca do livro editado o ano passado, que traçava a cronologia serratiana com letras e apontamentos biográficos, recebeu da parte do livreiro a resposta "Mas falávamos de literatura, não?", como que desconsiderando a lírica do cantautor catalão. E agora o tradutor que simpaticamente se prestou a trazer-me Hijo de la Luz y de la Sombra, inexpressivo quando lhe confessei a alegria de ter de novo todos os discos de Serrat. Haverá outras pessoas que me conhecem que terão dificuldade em encaixar este prazer no resto da música que ouço, mesmo levando em conta a extrema amplitude dos interesses. E ao escutar o novo CD uma razão acorre de imediato (como se fosse preciso...). É preciso sim escutar o modo como Serrat pronuncia a palavra "mulher", e isso quase bastava. Ele teve tantas, sem que tal facto diminua a intensidade ao nomeá-las por todas: como se cada uma que tenha perdido ou a que não chegue mais pudesse valer pelas outras. Serrat canta com a voz que não tenho e devo mostrar-me agradecido por saber ouvi-lo.
[para a Sandra L., uma querida.]
3.08.2010
Fim-de-semana no País das Maravilhas
Thank you. Thank you. Thank you. O Alice de Tim Burton, além de ser uma proeza visual como nunca vira, curou-me a disfunção óptica em relação ao 3-D (ou isso ou os óculos de Avatar estavam estragados). E mantive-me de queixo caído ao longo das suas quase duas horas. Não conhecia o livro e não fiquei fãã da história. Mas aquele universo parece criado de raíz para um resultado artístico e tecnológico desta perfeição, e ganhou-me vezes consecutivas nos pormenores e na incrível galeria de personagens. Um Shrek melhor que Shrek porque mais subtil e porque servido pela graça do mais belo dos idiomas: o inglês falado pelos britânicos. E com isto brindo repetidas vezes à anglicização de Tim Burton, pois claro.
Vi também O Mensageiro, na procura das qualidades discriminadas pelo texto de Vasco Câmara no último Ípsilon. Gostei, mas falta-lhe alguma ousadia narrativa (e já agora também formal), dando a impressão que Oren Moverman terá usado de demasiado autocontrolo no seu filme de estreia. As situações repetem-se, acrescentando variações, sem que fique a sensação de irmos mais fundo no adensar da alma dos dois soldados que têm por missão comunicar aos familiares a morte em combate dos camaradas. Mas é obra séria, enxuta, que não propagandeia para nenhum dos lados: os que partem para a guerra e os que ficam para trás.
Antes que a cerimónia dos Oscars tivesse início, vi ainda Into the Night (1985), de John Landis, que tem as qualidades do sonho mais ou menos realista. Landis filma uma Los Angeles cuja noite parece não ter fim, em espaços que se abrem continuamente à fantasia (estradas vazias. mansões de luxo, o aeroporto, diners, iconografia pop como a imagem de Elvis ou o corpo de Bowie). Tem o incrível Jeff Goldblum na pele de um indivíduo que sofre de insónias, que descobre que a mulher o atraiçoa. Ed é um totó igual a tantos de nós que se transforma num improvável herói inspirado pela beleza máxima de Michelle Pfeiffer, ainda mais bela do que a nossa capacidade de a recordar. Into the Night ilustra de forma igualmente despretensiosa o que a propósito do cinema de Hitchcock chamaram de MacGuffin. A intriga das esmeraldas não vale nada perto dos olhos de Michelle Pfeiffer, irresistível mulher em apuros que com a nossa empatia vamos ajudar a salvar.
E os Oscars? Como sempre decidi em favor da maratona próximo da hora. A cerimónia teve ritmo, ganhou bastante com o rigor exercido sobre a duração dos agradecimentos, teve momentos admiráveis na evocação de John Hughes, na coreografia que apresentou as bandas-sonoras nomeadas ou na rábula do filme de terror de baixo orçamento interpretada pelos anfitriões da noite: Alec Baldwin e Steve Martin. E foi porreiro testemunhar em tempo real o melão de James Cameron, que é duro relacionar com o cineasta que nos deu Terminator ou True Lies e que hoje parece um ministro da Cientologia, ao qual os colaboradores se referiam com um basbaque digno de uma criatura do planeta Pandora.
3.05.2010
O estranho e o familiar
Nunca me ocorreria esta associação porque 2001 é um filme que não aprecio. Mas o resultado é brilhante, e o texto é muito bom também. Queremos mais, Eduardo!
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