12.02.2008

O esteta da paixão


























A caixa Valerio Zurlini (1926-1982), que a Costa do Castelo colocou há dias no mercado, é talvez a mais importante edição videográfica de 2008. Há algum tempo que desejava descobrir outros filmes do realizador italiano, depois de ter visto, no mesmo dia, na Cinemateca, La Prima Notte de Quietti (1972) e O Deserto dos Tártaros (1976), duas obras-primas absolutas e absolutamente distintas entre si. Parti então directo para os títulos que a caixa também traz e que me faltava ver: o que veio a suceder novamente num único dia.
A Rapariga da Mala (1961) ilustra de início até final uma frase que eu ouvira a um amigo, que por sua vez lhe tinha sido confiada pelo seu pai. A frase usava palavras brutais mas na prática dizia, "Quando vires uma mulher muito bela, lembra-te que há sempre um homem que está farto dela." A protagonista deste Zurlini chama-se Claudia Cardinale (Aida) e encontrava-se no apogeu da beleza. Mas é também um corpo abandonado, desde logo nas primeiras cenas. E é ainda uma mulher à deriva na sua história de sedutora incompetente (inconsequente) que participa de uma dupla natureza: é capaz de deslumbramentos de adolescente que sonha com uma vida de princesa (junto do duque de Edimburgo, seu herói das revistas de coração), e por outro lado manifesta um desencanto e uma amargura de quem se limita a sobreviver dia após dia e logo cede às atenções rasteiras dos homens que a cercam. É bem possível que nos apaixonemos e desapaixonemos várias vezes por esta "rapariga da mala". Tal ambivalência é algo que Zurlini gere brilhantemente. É o que acontece no final com o jovem Lorenzo, e aquilo que traduz o conteúdo do envelope que este deixa a Aida na estação de comboios que o cinema de Valerio Zurlini carrega com a fatalidade das despedidas. E nesses instantes finais Lorenzo torna-se um homem, nem mais nem menos cínico do que qualquer outro.
Dois anos antes da ragazza, Zurlini havia dirigido outro drama que dava igualmente conta da paixão entre um jovem adulto e uma mulher mais velha: uma viúva de trinta e poucos anos (que nos tempos actuais corresponderia a uma mulher na ternura dos quarenta). Verão Violento (1959) passa-se por alturas da II Grande Guerra e trata de um amor que tem por obstáculo, da parte dela, as convenções sociais e a carga opressiva da família; da parte dele, e nessa feliz formulação apresentada por Vasco Câmara no texto nobre a caixa Zurlini do último Ípsilon, a "deserção de consciência". A história do par e da sua paixão adulta (ao contrário do enamoramento de Lorenzo n'A Rapariga da Mala, vivido aos 16 anos) é filmada com enorme subtileza ao longo do ritual de afastamento e aproximação (condicionado pela resistência dela, a esplendorosa Eleonora Rossi Drago - na imagem acima junto de Jean-Louis Trintignant), até que os amantes caiam nos braços um do outro. Este Verão Violento tem para mim a força de um The End of the Affair (recordando aqui a excelente adaptação trazida por Neil Jordan, com Ralph Fiennes e Julianne Moore nos principais papéis). Amor e Renúncia, a combinação perfeita no cinema. Filmadas com o pudor de um esteta dos sentimentos, matéria que com Valerio Zurlini temos todos muitíssimo a aprender.

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