4.05.2010

Merda!
















Vi esta Páscoa Merde (2008), curta-metragem realizada por Leos Carax, que não filmava em substância desde Pola X, nove anos antes. A obra à "merda" de Carax pode ser interpretada como pequena vingança face às reacções suscitadas pelos seus títulos anteriores, que ao chegarem ao ecrã arrastavam com eles histórias de megalomania quando não mesmo de demência que penalizaram Carax e a sua imagem de apenas conseguir viver nos estados extremos do estrelato e do degredo.
Devo reconhecer que este é o primeiro filme de Leos Carax de que gosto por inteiro. Subscrevo fulgurâncias passadas no cinema do francês e também profundas irritações. Mas o aspecto absolutamente inusitado da ficção, que responde com um implicito "vão à merda!" à proposta de integrar o conjunto de três filmes (os outros foram realizados por Michel Gondry e Bong Joon-ho) sob o conceito agregador Tokyo! (tendo sempre por cenário a capital japonesa), é de uma subversão que apetece celebrar. Este tipo de convite costuma ter por resultado irrelevâncias caricaturais dos autores envolvidos e Leos Carax, por um processo de subtração, servindo-se de imaginação patife que não estabelece limites para os seus delirios, fala-nos de uma criatura que habita os subterrâneos da cidade e que apenas vem à superfície para fazer pilhagens tão aparentemente desprovidas de motivação como os gestos lúbricos que a levam a passar a língua pela pele (pelas axilas!) das jovens raparigas em fuga.
Merde (regresso do Denis Lavant dos três primeiros filmes de Carax), de seu nome, é uma figura repugnante de unhas encaracoladas à Giles Deleuze, imundo da cabeça aos pés, cego de um olho, com barba pontiaguda que aliada aos esgares expressionistas nos recorda o genial Nikolai Cherkasov do Ivan de Eisenstein (ver imagens acima). O filme parece troçar das paranóias do mundo contemporâneo em relação ao terrorismo, ao mesmo tempo que se diverte a dar tratamento niilista aos códigos do cinema de monstros. Merde é uma aberração de origem desconhecida que habita um buraco junto com algumas relíquias de guerra, onde mais tarde vem a ser descoberto e capturado. O julgamento de Merde não suscita menor perplexidade que a primeira metade do filme. Leos Carax monta um teatro do absurdo no interior da sociedade normativa japonesa, e o espectador arrisca-se a deixar fugir o único momento esclarecedor das intenções de Merde e, por inerência, do realizador: quando o advogado de defesa, o único capaz de se exprimir naquela linguagem gutural retorcida, traduz o desprezo de Merde pelas pessoas e o seu contrastante amor à vida. Merde é um gesto criador onde o gosto pelo cinema e o gosto pela vida são uma só coisa. O terrorismo do filme é apenas conceptual e o sentido de transgressão absolutamente vitalista. Antes de ser executado, Merde tem direito a uma derradeira refeição e pede lhe tragam as duas coisas que mais gosta de comer: flores e dinheiro.

Arquivo do blogue