9.30.2008
Sapatos vermelhos
Dizem que aos quarenta temos idade suficiente para usar sapatos vermelhos sem nos ralarmos com a opinião alheia. Vou a caminho, mas já sinto confiança para abraçar o chavão estando-me nas tintas para o que os outros possam pensar. Como no caso deste disco de David Gilmour, cheio de serenidade musical e lírica pronta a consumir, que foi das coisas que escutei este ano que melhor me tem sabido. Progressões lentas, aparato orquestral e carpintaria instrumental dos seventies, executada pelos melhores dos melhores: Phil Manzanera, David Crosby e Graham Nash, o saudoso Richard Wright (começo a perceber as saudades que dele terei no futuro), Robert Wyatt (hang in there Bob!) e, claro está, David Gilmour, que pelo que vou lendo deve ser um tipo mesmo impecável. Não que eu procure na música as qualidades humanas do artista, embora o caso mude por vezes de figura tratando-se de livros ou filmes. Mas procuro com frequência nuvens sobre as quais me deito, e adormeço, à medida que os fardos escorregam por mim na direcção dos pisos inferiores. Atribuo à música um valor que tem a ver com a sua capacidade de me elevar. Abraço o clichê, e sigo viagem com ele. De preferência, descalço.
Frank Galvin (1925-2008)
Ontem optei por ficar em casa para me despedir de Paul Newman. Falhei os cinquenta anos da Cinemateca. Falhei também o décimo aniversário do Lux/ Frágil. Falhei os jornais do domingo, por razões que não merecem comentário. Fiquei portanto a saber ontem que Paul Newman tinha morrido sexta-feira passada: morte há muito anunciada. A forma que encontrei de lhe dizer adeus foi rever aquela que considero a sua mais sublime interpretação. Dos rostos iconográficos do período de transição do classicismo para a modernidade do cinema de Hollywood, Newman tem a minha preferência. Acima dele só Clint Eastwood, mas isso levava a longa (aqui inoportuna) elegia e em vida. O filme de 1982 chama-se The Verdict, foi realizado por Sidney Lumet com base num guião de David Mamet. Newman está sublime, e o filme tem momentos em que se transcende a especificidade da linguagem cinematográfica. Como aquele em que o advogado Frank Galvin visita o hospital onde está internada a cliente que representa para ele a (derradeira?) possibilidade de redenção profissional, e que sai de lá com a consciência de que a redenção, a acontecer, será bem mais profunda que isso. Será redenção pessoal, humana, a recuperação da dignidade afundada em dezenas de copos madrugadores: os que se tomam ao adormecer quando não ao despertar. A cena é magnífica e passa-se assim: Galvin entra sem autorização no quarto do hospital (espaço decrépito cheio de corpos invisíveis de tão presentes que são) e desata a tirar polaróides da jovem acamada. Quando as imagens se revelam, assim compreende que tem na frente um ser humano que a negligência médica (de um médico, com a conivência de outros, generalizemos ma non troppo) arrumou para a condição de vegetal. O assomo das imagens fotográficas dá-se em simultâneo com a consciência expressa no olhar deste actor capaz de milagres como os de Dreyer. The Verdict, mais do que o retrato dos caminhos enviesados da justiça, e da possibilidade de esta poder vir a ter lugar em circunstâncias irreversíveis, é tremenda obra sobre a recuperação da dignidade de uma pessoa. Ou de "duas". Mas para o caso, daquela sobre a qual me debruço e me despeço: Frank Galvin.
9.25.2008
Será este o melhor álbum
A revista Uncut de Outubro traz, em edição exemplarmente cuidada do ponto de vista gráfico, os resultados do questionário que visa aferir qual a melhor canção/ tema dos Pink Floyd de todos os tempos. Já aqui relatei que recentemente investi pelo património floydiano adentro seriamente. Até agora só boas descobertas, reconhecendo que me tenho protegido ao abrigo da palavra escrita melhor sedimentada. Um pormenor deu-me privado regozijo (não mais) e tudo se expõe num par de frases: aqui há semanas havia estruturado um pequeno post que dava conta da afinidade que eu sentira entre uma canção dos Pink Floyd, See-Saw, do álbum A Sourceful of Secrets, e o repertório de Robert Wyatt tomado em termos genéricos. Pois vem a ser o próprio Robert Wyatt a eleger essa música dos Floyd como a sua preferida da discografia da banda, o que me enche de orgulho estúpido, ou não fosse eu doente por estas intersecções demasiado significativas. Mas mais importante que o facto diverso é a constatação de que talvez a grande obra dos Pink Floyd (ou pelo menos a maior de entre as enormes) seja um disco habitualmente considerado de segunda linha. Refiro-me a Meddle, que escutei repetidas vezes na mesma tarde em que ouvi também pela primeira vez Atom Heart Mother, outro álbum especial. O que faz de Meddle um caso particular é o facto de os Floyd apontarem múltiplas direcções sem que o alinhamento sofra maleita de coerência. Vastas planícies instrumentais (Echoes ultrapassa a vintena de minutos) atravessam blues reconhecíveis (Seamus), há uma atenção dada ao som que é prenúncio do super-profissionalismo do "lado escuro da lua" com a vantagem, no meu entender, de os Pink Floyd de Meddle se manterem ainda fortemente ligados à Terra: a canção Fearless termina com Anfield Road a entoar You'll Never Walk Alone. Nenhum outro disco que deles ouvi concentra este equilibrio entre oculto e revelação. O mistério das texturas abstractas e a desmesurada competência instrumental de um conjunto de músicos nas vésperas de se tornar numa super-banda. Meedle descobre a suprema virtude a meio do caminho: porque o estereótipo destapa a derradeira verdade. Se gostam verdadeiramente de música, descubram-no.
9.23.2008
Thanks
Devo aos bons préstimos do Jorge Dias, ex-Carbono, e de há uns tempos para cá gerente da Louie Louie da Rua da Trindade, a descoberta de Tanx, dos T. Rex. Ia inclinado para os álbuns vizinhos de Electric Warrior e, não fosse a ajuda especializada, acabava a trilhar território folk que para já não era minha intenção. Mas do que o Jorge não deu conta, e que motiva o tom jubilatório do post, é que a reedição ampliada que me vendeu traz, entre outras faixas bónus, o Children of the Revolution e o 20th Century Boy. Há dias em que um melómano deve absolutamente desviar caminho.
Todo o homem
«I am often asked if I believe in life after death. I don't believe in life before death. But I can tell you from bitter experience there is no life after marriage. A life of bourgeois domesticity will slowly kill you unless, of course, you know true love - in which case it will be death on impact. It is hopeless. The reason men and women do not understand each other is because they belong to different sexes. While every woman is at heart a mother, every man is at heart a lover.»
(Sebastian Horsley, Dandy in the Underworld, pág. 143)
ou, claramente, o original de todos os originais:
9.22.2008
Faraway, so close
Fim de citação
Rui Santos vem pedindo a cada domingo a cabeça de Paulo Bento numa qualquer bandeja. Ontem chegou a insinuar que a ovação recebida por Vukcevic ao entrar no jogo com o Belenenses significava que a popularidade do treinador não era a mesma. Eu estava lá e aplaudi aquele burro do Vukcevic - que não percebe que o calendário desta época lhe dará muitas oportunidades de ajudar a equipa e de se ajudar a ele próprio - porque quero que o jogador fique no Sporting. Treinado por Paulo Bento.
Quando mudei de canal para o Domingo Desportivo a entrevista de Derlei era vista e comentada por Carlos Daniel, Freitas Lobo e João Pinto. Importante o comentário deste último em relação à questão "balneário". Para citar Jorge Jesus (coisa que J.V.P. não fez), e falando bem e depressa, o bom balneário «é uma treta». Pelo menos é-o nos maiores clubes onde muitas vezes os jogadores colocam a ambição, o deslumbramento, acima do profissionalismo.
Quanto mais elevado for o nível das equipas, mais os responsáveis terão de ser autênticos domadores de feras. A demonstração de autoridade deve ser firme. Caso contrário acabarão devorados por elas. E pela maior fera de todas. A que vive de farejar e fazer sangue. «Vocês sabem do que estou a falar».
Quando mudei de canal para o Domingo Desportivo a entrevista de Derlei era vista e comentada por Carlos Daniel, Freitas Lobo e João Pinto. Importante o comentário deste último em relação à questão "balneário". Para citar Jorge Jesus (coisa que J.V.P. não fez), e falando bem e depressa, o bom balneário «é uma treta». Pelo menos é-o nos maiores clubes onde muitas vezes os jogadores colocam a ambição, o deslumbramento, acima do profissionalismo.
Quanto mais elevado for o nível das equipas, mais os responsáveis terão de ser autênticos domadores de feras. A demonstração de autoridade deve ser firme. Caso contrário acabarão devorados por elas. E pela maior fera de todas. A que vive de farejar e fazer sangue. «Vocês sabem do que estou a falar».
Parque jurássico
Há muito que desejava ter um disco dos T. Rex, a banda de Marc Bolan por sua vez herói musical dos meus estimados João Peste e Sebastian Horsley (quem é Sebastian Horsley??; fossem leitores regulares deste espaço e a pergunta não se vos colocaria). Queria um álbum com os "hits" 20th Century Boy e Children of the Revolution, mas pelo que percebo essas canções só constam de colectâneas e isso seria queimar a possibilidade de avançar pelos originais. Electric Warrior (1971) é um CD de originais, e se não tem nenhuma daquelas referências, oferece por outro lado Cosmic Dancer e Get It On, músicas que já conhecia mas que não associava aos T. Rex. E o resto do disco é igualmente genial. Não há que enganar quando ensaiamos um menear de ancas muito "glam" de trazer por casa, e trocamos a intensidade da guitarra eléctrica imaginária por uma igualmente invisível e frenética pandeireta. T. Rex é ritmo.
9.19.2008
Hemingway é português
Macacos me mordam
Em 1972 participei no filme de Werner Herzog, Aguirre, o Aventureiro. Ao revê-lo mais de três décadas depois quase consegui recuperar a experiência. Fiz o Don Pedro de Ursua e acabei morto antes da subida final do rio. Falhei a parte em que Herzog soltou dezenas (terão sido centenas?) de pequenos macacos sobre a jangada onde os poucos sobreviventes agonizavam de fome e de sede. O Kinski voltou a impressionar-me naquela sua brutalidade alucinada mas contida, no modo como consegue dar sem espalhafato a demência que se apodera de Don Lope de Aguirre, o grande manipulador, o terror dos selvagens e de nós próprios. Os olhos pareciam querer saltar-lhe das órbitas.
O filme de Herzog não envelheceu uma ruga que seja. Curiosamente, eu também não.
9.18.2008
Le mag
A Volume é feita pelo pessoal que semanalmente avia novo número da Inrockuptibles. É só música, limpa da politiquice que constitui prato forte da outra publicação. Foi aqui que mostraram - creio que na revista de estreia - um dossiê sobre a reedição de Pacific Ocean Blue, e sobre o seu autor, Dennis Wilson, com qualidade. A Volume funciona como espécie de Blitz da geração dos 30, com mais (tempo) para ler. E com relação à nossa imprensa, maior extensão de vistas. É equivalente à Mojo, mas não chega para a melhor revista de música de todas, que é como sabemos a inglesa Wire. Posso deixar de a comprar de um momento para o outro, embora até hoje tenha feito o pleno. A Volume não me ganhou ainda. Vem-me conquistando.
Anastasia Khitruk
Ouço as sonatas de Ivan Yevstafyevich Khandoshkin. Perguntam-me se estou melancólico? Uma mulher. Só as mulheres reagem à possibilidade da tristeza ou melancolia com preocupação. Respondo que me apetece a companhia da alma russa. Sem pensar no que isso significa. Sem qualquer esforço por me fazer entendido.
O último Sinatra
She Shot Me Down é considerado o derradeiro grande álbum de Frank Sinatra. Data de 1981, altura em que a vida de bebezainas, cigarradas e noitadas fazia-se notar na tessitura outrora totalmente robusta do crooner. O disco encontra-se hoje descatalogado, e quem quiser ter um exemplar da última prensagem em CD de inícios da década de 90, terá de desembolsar para cima de 450 euros que é quanto pedem os lojistas associados da cadeia Amazon.
A revista Mojo actualmente nas bancas traz uma página dedicada a She Shot Me Down, da autoria de Chris Ingham, que retrata o Sinatra daquele período, oferecendo alguns insights que apetece partilhar. Como este: «Sinatra and Jenkins [Gordon Jenkins, arranjador e regente de orquestra de alguns dos melhores Sinatra's de 2ª linha, e um ou outro de 1ª também] had collaborated sporadically since the mid-'50s and had won a Grammy for It Was a Very Good Year from their sumptuous celebration of maturity and dotage, September of My Years (1965), but "Gordy" wasn't everyone's favourite arranger. Sinatra's loyal pianist Bill Miller (then in the middle of a six-year estrangement from Frank) found Jenkins's writing "dull and boring", but suggested why Sinatra liked it. "There's a certain squareness about Frank; I say that affectionately," he once said. "He has an old fashioned side and Gordon Jenkins represents that. As a singer, he doesn't hear the harmonies... He hears those high singing strings - that was Gordon's gimmick.»
bold, naturalmente, meu.
9.17.2008
Algumas imperfeições
Imperfeições, 1 e 2, metades que compõem o duplo-CD de António Pinho Vargas, Solo, foram pensadas como sequências de um recital, e em grande parte respeitadas pelo músico quando apresentou o trabalho no pequeno auditório do CCB, há algum tempo atrás. O alinhamento é fértil em felicidades, nenhuma, na minha opinião, tão extrema como a ligação dos temas Lindo Ramo, Verde Escuro e O Movimento Parado das Águas. Pinho Vargas é dos nossos mais universais melodistas (concordo com o que li algures que dizia que o compositor era o mais exímio melodista a chegar depois de Carlos Paredes), e o seu repertório popular parece seguir a fluidez dos movimentos e ciclos da natureza. Há uma certa intemporalidade nesta música que penso que é dos melhores elogios que lhe podemos fazer. Fauré, Shostakovich, Jarrett ou Reich passeiam-se por aqui.
Amor
«Exige, no fundo, o tempo e o conhecimento que a vida moderna de hoje não permite e, mais, não tolera: se podemos satisfazer todas as nossas necessidades materiais com uma ida ao shopping do bairro, exigimos dos outros igual eficácia. Os seres humanos são apenas produtos que usamos (ou recusamos) de acordo com as mais básicas conveniências. Procuramos continuamente e desesperamos continuamente porque confundimos o efêmero com o permanente, o material com o espiritual.»
(João Pereira Coutinho, Como Jane Austen pode mudar sua vida, aqui, mas também aqui)
(João Pereira Coutinho, Como Jane Austen pode mudar sua vida, aqui, mas também aqui)
9.15.2008
Impressionismo
Mas o gozar a vida não implica ser-se forçosamente feliz.
A frase está no Le Stade de Wimbledon, de Mathieu Amalric. Filme de 2001, produzido por Paulo Branco, que adapta o romance de Daniele Del Giudice com esse título. Filme curto - cerca de 70 minutos - mas maravilhoso. A linha narrativa é ténue e vai-se progressivamente esfumando, tal como o rasto do avião que Amalric mostra num dos derradeiros planos. Há uma jovem mulher que viaja até Trieste (e mais tarde para Londres) para saber os motivos pelos quais um escritor adiou a escrita e acabou sem obra. O discreto agitador cultural, Bobby Vohler, que preferia viver a vida e a criação dos outros em vez das suas. O editor que os conhecidos recordam sem que as explicações dadas decidam sobre as razões profundas. O homem afinal como aglomerado de indícios cujo entendimento nunca poderá ser total. Le Stade de Wimbledon é sobre um mistério. Vários mistérios. Acrescentados à figura do escritor, a cidade de Trieste que Amalric capta nas diferentes estações, mergulhado na banalidade do trânsito de pessoas, horas, e veículos. E o mistério da deslumbrante Jeanne Balibar que interpreta a jovem mulher da qual não saberemos o nome, mas com quem mantemos aquela íntima ligação que se estabelece pelo testemunhar do que acontece quando nada parece acontecer. Nos silêncios e nas expressões que preenchemos com aquilo que é nosso e que nos faz ser parte deste filme. Pequenas ironias anónimas de todos os dias. O mistério da vida. Le Stade de Wimbledon acompanha a deriva da protagonista com igual sentido de risco ao que Amalric assume quando decide filmar sem argumento, apenas munido do livro de Del Giudice que acaba com os cantos todos dobrados: vê-se no DVD que tem um posfácio chamado Malus que oferece a reflexão sobre as fases do projecto, e que na minha opinião ganha em ser visto antes do filme - e assim do posfácio fazermos prefácio.
9.13.2008
Verdes anos
O buraco negro
A estrutura circular de Antes Que o Diabo Saiba Que Morreste permite ao filme escavar um buraco negro cada vez mais fundo que acabará por engolir os elementos da família Hanson. A obra evolui por um conjunto de flashbacks que um pouco à maneira dos últimos filmes de Gus Van Sant dão a observar a acção sob várias perspectivas, que correspondem ao acentuar das diferentes combustões psicológicas das personagens. Há mérito enorme no argumento do estreante Kelly Masterson, e há depois o (cito) "milagre" de observarmos o nervo de um cineasta de 84 anos de idade, o outro grande Sidney, Lumet: o de Dog Day Afternoon, Network, Serpico, Prince of the City, The Verdict, Running on Empty, ou Q&A.
Quando Antes Que o Diabo Saiba Que Morreste arranca parece que a morte já paira sobre ele. Tal como, por exemplo, em O Funeral, de Abel Ferrara (de que me lembrei frequentes vezes enquanto via este Lumet), há logo como que um prenúncio de tragédia desde as primeiras imagens - como se as cores tivessem algo de glacial e esquálido. E o puzzle proposto podia até ser a reconstituição da memória recente de qualquer um daqueles cadáveres por vir. A montagem marcando, pelo estilhaçar dos planos que introduzem os vários saltos temporais, por um lado a desagregração incontrolável daquele universo, e por outro um processo cognitivo que avança (ou retrocede) por fogachos. Mas é, podem crer, todo um virtuosismo sem pingo de arrogância. Aquilo é tristíssimo, pequeno, humano.
À parte de Ferrara, o filme de Lumet fez-me também pensar em Paul Schrader, sobretudo no Schrader de Amercan Gigolo, The Comfort of Strangers, ou Light Sleeper. O Schrader que filma a sofisticação frígida e a ruína moral como reversos uma da outra. Há uma cena das mais brilhantes de Antes Que o Diabo... que tem a ver com a deslocação de um dos protagonistas a uma luxuosa "sala de chuto", situada num arranha-céus espelhado de Manhattan. Até que saibamos o que ele foi lá fazer, há todo um conjunto de sinais que adensam o mistério daquele local e do seu proprietário. Em diversos momentos, Sidney Lumet cria apenas com apontamentos visuais uma relação fortíssima entre o espectador e a acção no ecrã. Outra sequência não menos brilhante é aquela que antecipa o colapso último da sanidade da personagem de Philip Seymour Hoffman, quando este já sozinho, em sua casa, desarruma uma série de objectos que levam a que em nós se crie a expectativa de um suicídio. No fundo a tragédia que é anterior e que está na origem da história da família Hanson.
9.11.2008
Escutado há minutos
9.10.2008
Provas de contacto
João Lisboa recupera um texto seu, de 1992, sobre Sahara Blue.
In the House of Mirrors, que sairá pela Crammed a 22 de Setembro, fica como edição póstuma e provável último registo acrescentado à discografia de Hector Zazou. A avaliar pela nota de intenções, onde a certa altura se diz "In The House Of Mirrors might also be viewed as a discreet homage to the music produced in the '70s by the likes of Terry Riley and Fripp & Eno, translated for the first time into a classical Asian environment", os pontos de contacto multiplicam-se tal como elementos sonoros reprocessados.
Rimbaud/ Zazou/ Cale
PREMIÈRE SOIRÉE
- Elle était fort déshabillée
Et de grands arbres indiscrets
Aux vitres jetaient leur feuillée
Malinement, tout près, tout près.
Assise sur ma grande chaise,
Mi-nue, elle joignait les mains.
Sur les planchers frissonnaient d'aise
Ses petits pieds si fins, si fins.
- Je regardai, couleurs de cire,
Un petit rayon buissonnier
Papillonner dans son sourire
Et sur son sein, - mouche au rosier.
- Je baisai ses fines chevilles.
Elle eut un doux rire brutal
Qui s'égrenait en claires trilles,
Un joli rire de cristal.
Les petits pieds sous la chemise
Se sauvèrent: "Veux-tu finir!"
- La première audace permise,
Le rire feignait de punir!
- Pauvrets palpitants sous ma lèvre,
Je baisai doucement ses yeux:
- Elle jeta sa tête mièvre
En arrière: "Oh! C'est encor mieux!...
Monsieur, j'ai deux mots à te dire..."
- Je lui jetai le reste au sein
Dans un baiser, qui la fit rire
D'un bon rire qui voulait bien...
- Elle était fort déshabillée
Et de grands arbres indiscrets
Aux vitres jetaient leur feuillée
Malinement, tout près, tout près.
Dito na tradução inglesa por John Cale, no álbum Sahara Blue de Hector Zazou. Junto com os gémissements de Elizabeth Valetti e as carícias instrumentais de David Sylvian.
(imagem: A Mulher das Dunas, 1964, filme de Hiroshi Teshigahara que nunca vi)
9.09.2008
Anda tudo surdo ou quê?
Esta é a capa original do volume que o Público colocou hoje à venda, correspondente à edição que vem dedicando a Frank Sinatra. Na pesquisa da imagem deparei-me com um conjunto todo ele de apreciações negativas ao disco: a variação situa-se entre a estrela e meia e as duas estrelas, as críticas incidindo na escolha de repertório pop/ folk e nos arranjos de Don Costa. Mesmo se comparado com o patamar maravilha das maravilhas criado pela discografia de Sinatra com Nelson Riddle, este álbum nunca se situaria na metade inferior da escala. É um belo disco que ainda que dispensássemos a comprovação, mostra que as qualidades interpretativas de Frank Sinatra têm propriedades alquímicas. Vocês percebem o que quero dizer. Quanto às orquestrações, limitam-se a servir a Voz e o seu colorido "de época" pende para o classicismo MOR. Estou seguro de que o meu caro major assina por baixo.
16 graus na esplanada
O duplo-álbum/ duplo-CD Physical Graffiti tem um tema chamado Houses of the Holy, designação do anterior disco dos Led Zeppelin (1973) que não tem qualquer música com esse nome. A curiosidade explica-se pelo facto do disco de 1975 ter sido completado com material trabalhado anteriormente. Outra curiosidade: Physical Graffiti foi lançado no preciso dia do meu 5º aniversário, a 24 de Fevereiro. Diz quem sabe que é o último disco dos Zeppelin que merece fazer parte de qualquer discoteca que se leve a sério. O filme-concerto dos Led Zeppelin, The Song Remains the Same, que data do ano seguinte à edição de Physical Graffiti, será exibido pela Cinemateca na próxima sexta-feira, às 22h30. Ao ar livre. Oxalá o tempo nos dê uma noite de Verão. Diz quem viu que o documento faz justiça ao melhor período da banda. Nessa noite, na Barata Salgueiro, só se dormirá depois da meia-noite e meia.
Paulo Jorge Gomes Bento
9.08.2008
Um homem
The Man Who Couldn't Afford To Orgy
Pity the poor man, pity the sad man
Pity the green man, who couldn't afford to orgy
Pity the policeman, pity the snowman
Pity the woman, who couldn't afford to orgy
"Say, Johnny, you're a little lonesome?
Oh, come on big boy, let me show you
Mmm, don't you wanna good time?"
Good for the postman, good for the con man
Good for the milkman, they can afford to orgy
Good for the butcher, good for the astronaut
Good for the curate, they can afford to orgy
"Come on, honey, keep breaking my heart
Ooh, you're breaking my heart. Aah, aah"
If it's a problem, getting together
Leave it alone, it's the easiest way
Great while it lasts, but it don't last forever
Nothing like living real dangerously
"Ooh, come on, give yourself a break.
Oh, don't worry, baby, you'll get over it.
Mmm, you'll get over it."
Sorry to hear it, sorry to see it
Sorry to mention I couldn't afford to orgy
Seems such a bother, one thing, another
Tempting and teasing, just for an orgy
"Oh no, you have to take a chance.
Ah, you've gotta give me one chance anyway, ha heh heh heh.
Mmm, you can sure do it. Ah, mmm. C'mon. Mmm. Ooh. Ah, ooh, mmm."
9.05.2008
Zé do Caixão
Todo o homem tem dentro dele um Zé do Caixão. O próprio Mojica Marins tratou de explicar aos presentes na sessão de ontem de Encarnação do Demónio que o cinema de terror serve para homens e mulheres se agarrarem aproveitando a mecânica dos fluidos posta a circular no escuro. O terror do universo do Zé do Caixão - a avaliar por este filme que parece funcionar como súmula... 40 anos depois - é da estirpe romântica. E o corpo humano o seu principal veículo de expressão. A violentação das carnes postas à prova pelo coveiro como modo de separar os seres superiores dos inferiores (aqueles que suportam menos a tortura, que têm medo de sofrer - de morrer), tem por propósito a união das almas. José Mojica Marins usou este personagem para despir um grande número de jovens e belas mulheres (ressalve-se a subjectividade de ambas as categorias), e não me ocorre de momento intento tão nobre para o cinema. Até porque é encenando pequenas mortes que nos preparamos para o desfecho derradeiro. O universo do Zé do Caixão é uma brincadeira, mas feita com tamanho gosto, brio e folclore (o vibrato do protagonista em constante overacting é fantástico) que embora suspeitando da superior qualidade dos filmes que vêm antes (que serão mostrados no decorrer desta edição de MotelX), devo confessar que me diverti com o desvario sanguinário e alucinado da segunda infância do Zé: do caixão à cova.
9.04.2008
Jukebox (excêntrica)
Alinhamento:
1) Que bom estava o feijão verde, a acompanhar umas ovas de estalo. Há quem tenha a obsessão de variar de restaurante todos os finais de semana. Por mim jantaria às sextas, sábados ou domingos, de bom grado, no sítio onde almoço quase todos os outros dias.
2) Dão como praticamente confirmado o regresso de Liedson a tempo de disputar o derby da Luz. Vai ser muito bom reencontrar Liedson. Vai saber bem ver esse jogo entre conhecidos, entre jarros da casa, entre pratos.
3) O MotelX começou ontem com Doomsday. Plateia repleta que chegou a aplaudir nas cenas mais aparatosas. Forma de vivenciar o cinema que respeito, em silêncio. A festa era deles: o filme, parte Os Filhos do Homem, parte Mad Max, parte Em Nome da Rosa, revelou-se pífio de interesse. Ou sou eu que não estou calibrado para o género. Esta noite o check-in far-se-á na presença do brasileiro Zé do Caixão.
4) As guitarras dos Dead Meadow ecoam na caixa craniana, produzindo ligeira e ilusória embriaguez. Escutar rock nos auriculares é como passear o animal pela trela. Por vezes é a única alternativa. Eles também precisar de sair de casa. E são cada vez em maior número.
5) As eleições americanas revelam, no geral, por parte da imprensa, uma cobertura tendenciosa que se alastra às conversas de cada um de nós. O resto do mundo quer a vitória de Obama, encarnação da "mudança" que o resto do mundo não arrisca concretizar ponto por ponto. Mas e o que querem os americanos? E o resto do mundo o que quer, de facto? Uma causa, um hype (de proporções bíblicas), a ficção que faça acreditar que o rumo do planeta pode ser outro do que aquele para onde caminha, em parte conduzido por poderosos centros de decisão, geradores de riqueza em proveito próprio (a sobrevivência dos mais fortes marca as etapas de progressão da espécie)? E que isso é realmente importante. Detenho-me com preocupações minhas, talvez mesquinhas (o resto do mundo que se lixe). Limito-me a viver (cultivando as pequenas epifanias, ilusões pessoais, à escala do individuo e não da humanidade), e quem vier depois que faça igual se quiser. A vida já é de si suficientemente complexa, ou dispersa, e se os próximos frequentemente se esquivam de participar nas causas vizinhas (preferindo o vazio das cruzadas longínquas) - o primeiro a me assegurar que a proximidade que nos vendem todos os dias não é sinónima de uma distância relacional que nunca foi tão larga como hoje (face a expectativas que levariam a reflectir sobre aquilo que têm de real e de virtual), que atire a primeira pedra -, também eu posso ser egoísta e inconsequentemente caprichoso. McCain, McCain, McCain (ou... Obama, Obama, Obama). A América é bonita para visitar, mas viver em Lisboa é aquilo que sei. Aquilo a que me agarro. Os próprios americanos definiram-no melhor que ninguém: "home is where the heart is". O meu continuará por aí. Perto. Não sou melhor nem pior que vocês.
9.03.2008
Duas categorias
A vantagem de descobrir bandas como Awesome Color, Stooges, ou Black Sabbath, tudo ao mesmo tempo, é poder senti-las contemporâneas do meu presente, em vez de me perder em considerações sobre o que veio antes ou depois, ou sobre quem copiou quem ou o quê. Mais cedo ou mais tarde toda a música acaba por cair numa de duas categorias: boa música ou música má. Apenas isso.
9.02.2008
Auto-paródia
Praise for Blue Cathedral: (daqui)
"Laughable in every way. Even though it easily surpasses their self-titled debut album, which is arguably the worst LP ever released. I mean, these are actual grown men composing songs about Harry Potter-esque non-topics as "antlers of the midnight sun" and the "brotherhood of the harvest." They should have just pulled out their Dungeons & Dragons swords and their big brothers' bongs, instead of getting anywhere near a fucking recording studio. Every track (except the requisite "experimental" piece, "Organs," which is, of course, based on a riff played by... brace yourself... an ORGAN [gee, how clever, guyz]) sounds like a hackneyed spoof of the career of a different '70s boogie-rock band or prefab metal band. This album actually makes bands like High Rise and Kyuss sound good/non-retro, and that's a stunning accomplishment. Even the album title is a thinly-veiled reference to corny Neanderthal-rawk influences Blue Cheer and Cathedral, or at least I'd wager it.
Looks like Sub Pop and Matador have each decided to sign their own token (tokin') shitty retro-faux-psychedelic-blooz rock band. (Matador's being Dead Meadow, of course.) Such a sad demise for once-meaningful labels. I hold graying rock critics, and people like certain RYMmings (RYM lemmings) who secretly dream of being graying rock critics, directly responsible for the proliferation of bands like C.O.F.
Bands who do know history are bound to try to repeat it, but that doesn't mean we have to buy it hook, line, and sinker. A few years ago I saw this CD for sale in the $2 bin, and almost bought it just for irony value (and to prevent some other sorry soul from having to eventually own it), but I decided better, partly because it would've been too embarrassing to even bring it to the register.
Plus, haven't we had enough crappy "[burning object] + [indication that it is indeed of elevated temperature]" bands already in recent years? (Cue "This Is Why I'm Hot" by Mims...) Fiery Furnaces, Comets On Fire, Hot Hot Heat... Enough already. And they are all blatant ripoffs of separate decades ('60s, '70s, and '80s, respectively), but I digress. Set Fire To Flames and Last Burning Embers are halfway decent, at least...
Go buy two copies of Bardo Pond's Amanita or Nudeswirl's Nudeswirl or Ash Ra Tempel & T. Leary's Seven Up or Verve's A Storm In Heaven and call me in the morning.There, doesn't that feel much better?"
Para outro tipo de opinião, ver aqui.
"Laughable in every way. Even though it easily surpasses their self-titled debut album, which is arguably the worst LP ever released. I mean, these are actual grown men composing songs about Harry Potter-esque non-topics as "antlers of the midnight sun" and the "brotherhood of the harvest." They should have just pulled out their Dungeons & Dragons swords and their big brothers' bongs, instead of getting anywhere near a fucking recording studio. Every track (except the requisite "experimental" piece, "Organs," which is, of course, based on a riff played by... brace yourself... an ORGAN [gee, how clever, guyz]) sounds like a hackneyed spoof of the career of a different '70s boogie-rock band or prefab metal band. This album actually makes bands like High Rise and Kyuss sound good/non-retro, and that's a stunning accomplishment. Even the album title is a thinly-veiled reference to corny Neanderthal-rawk influences Blue Cheer and Cathedral, or at least I'd wager it.
Looks like Sub Pop and Matador have each decided to sign their own token (tokin') shitty retro-faux-psychedelic-blooz rock band. (Matador's being Dead Meadow, of course.) Such a sad demise for once-meaningful labels. I hold graying rock critics, and people like certain RYMmings (RYM lemmings) who secretly dream of being graying rock critics, directly responsible for the proliferation of bands like C.O.F.
Bands who do know history are bound to try to repeat it, but that doesn't mean we have to buy it hook, line, and sinker. A few years ago I saw this CD for sale in the $2 bin, and almost bought it just for irony value (and to prevent some other sorry soul from having to eventually own it), but I decided better, partly because it would've been too embarrassing to even bring it to the register.
Plus, haven't we had enough crappy "[burning object] + [indication that it is indeed of elevated temperature]" bands already in recent years? (Cue "This Is Why I'm Hot" by Mims...) Fiery Furnaces, Comets On Fire, Hot Hot Heat... Enough already. And they are all blatant ripoffs of separate decades ('60s, '70s, and '80s, respectively), but I digress. Set Fire To Flames and Last Burning Embers are halfway decent, at least...
Go buy two copies of Bardo Pond's Amanita or Nudeswirl's Nudeswirl or Ash Ra Tempel & T. Leary's Seven Up or Verve's A Storm In Heaven and call me in the morning.There, doesn't that feel much better?"
Para outro tipo de opinião, ver aqui.
The Host
É cada vez mais raro assistir-se a uma proposta cinematográfica que movendo-se no interior de um género com regras bem codificadas, consiga trazer à superfície a sensibilidade particular do seu autor. Nos últimos anos, à excepção deste The Host que motiva o post, só me lembro de alguns filmes de M. Night Shyamalan, sobretudo O Protegido que continua a ser o meu preferido. Voltando a The Host, que tive vontade de rever recentemente (e cada vez me convenço mais que os filmes que ficam são os que desejamos rever, ao contrário de outros que alimentam a memória reverencial que é mais mito que qualquer outra coisa), a impressão deixada é a de estar perante um objecto de grande originalidade e talento. O realizador coreano Bong Joon-ho sabe criar uma relação de facto física com as imagens do seu filme, e depois investe num tom de desconcertante auto-paródia que não compromete, antes intensifica, a espectacularidade do mesmo. Bong Joon-ho deve ser adepto do "complexo Fernando Mamede", já que a família de anti-heróis em combate com a viscosa criatura é constituída por um velho pai e três filhos falhados, cada qual à sua maneira: um sofre de ligeiro atraso mental, outro é bêbedo e está desempregado, finalmente a filha que parece ser daquelas atletas de quem embora muito se espere invariavelmente bloqueiam no momento da verdade. Isto são traços psicológicos que servem a acção e que o realizador não esgota no pressuposto de potenciar o efeito dramático. Aliás The Host é obra que se vê com relativo distanciamento, sem que isso belisque o nosso prazer intelectual e emocional. Bong Joon-ho estabelece uma progressão dramática que é da ordem do sonho, onde aquilo que acontece nunca surge quando esperamos que suceda, nem sucede de acordo com as expectativas que alimentamos com base em objectos que tenham afinidades com The Host: basicamente a história do cinema toda que envolva bicharocos nas suas variadas dimensões. E são pouco comuns os filmes que revelam coragem de apresentar como solução redentora a substituição de um filho biológico por outra criança que mostra traços mais óbvios e não menos pitorescos (comer e dormir, dormir e comer) de identificação com o "pai". A este título a cena final, passada à hora de jantar, é a meu ver memorável.
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