1.05.2007
Músicas/ Interiores
Podemos habitar a música como se fosse o espaço mais íntimo da nossa própria casa? Um disco voltado a escutar recentemente, na placidez relativa dos dias feriados, fez-me pensar que sim. Approaching Silence, objecto com tantas vozes e palavras quase imperceptíveis em fundo, onde David Sylvian se remete, junto com Robert Fripp, Frank Perry e Holger Czukay, a uma arquitectura exclusivamente instrumental, é um extenso manto sonoro (duas peças de duração superior a 30 minutos com um interlúdio breve pelo meio) que me acompanhou as práticas de yôga caseiras e que havia deixado de ouvir desde que a casa passou a ser outra. Experimentei de novo, há poucos dias atrás, e foi como se me sentísse transportado para aquele outro espaço. Bem vistas as coisas, o espaço é o mesmo, não fossem as emoções a toldar uma imagem interior que vem de dentro de mim. Assim como é também profunda e não quantificável a ligação que sinto para com estas composições de Sylvian/Fripp/Perry/Czukay, todos em particular, um mais em particular que todos os outros.
Pelos mesmos dias deu-se igualmente o reencontro com o CD Frantic de Bryan Ferry - "perdido", depois recuperado - e foi como se nunca antes o tivesse ouvido. Isto é pura especulação, eu sei, mas senti uma projecção tal nestas canções daquilo que imagino que seja a pessoa de Ferry - sabendo que existem duas que são covers brilhantes de Bob Dylan, de que Ferry se ocupará na totalidade do seu próximo disco - que o CD poder-se-ia chamar "The Life of Bryan" com igual propriedade. De repente, não me recordo assim de outro alinhamento maduro que traduza aquilo que pode ser a "dor de corno" sentida já na segunda metade da vida.
Para último lugar fica uma referência obrigatória (um mea culpa) a um dos melhores CD's de 2006 que acabou esquecido no momento de fazer contas à música do ano. The Letting Go é pelo menos tão belo como o melhor que está para trás na discografia de Bonnie Prince Billy. Não faço ideia que raio terá acontecido para que não me tivesse apercebido logo às primeiras audições do encantamento que se desprende destas canções. Será porventura o disco do apaziguamento de quem já olhou de frente a "escuridão", a não ser que mais escutas lhe revelem um lado sublinhado a negro. A rendição de Oldham (onde teria ele escondido a serenidade?) que a paisagem da Islândia terá sido a primeira testemunha. Mas nunca antes de Dawn McCarthy (dos Faun Fables), aquela que juntou a sua à voz igualmente sobrenatural de Will Oldham. The Letting Go representa assim uma espécie de prolongamento do Harvest Moon de Neil Young por atalhos menos luminosos. Seja a sua harmonia apenas aparente, continuará a ser tão maravilhoso quanto isso.
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