10.12.2009

O matadouro












Seul Contre Tous é como se chama o filme que Garpar Noé realizou antes de Irreversible. É um filme extraordinário, também na medida em que se trata de uma experiência cinematográfica invulgar. Mas tem antececessores; tudo tem sempre antecessores. Ocorreu-me frequentes vezes o Taxi Driver de Scorsese, personagem igualmente acossada pelos seus recalcamentos, a voz interior martelando-lhe a consciência do início ao fim. Gaspar Noé intensifica o processo, e porque o seu protagonista trabalha num talho os golpes do cutelo assim como os disparos de uma arma que o acompanhará a partir de certa altura golpeiam a montagem, e reforçam a cadência marcial de Seul Contre Tous: guerra privada contra tudo e contra todos. O filme prolonga a história da obra de estreia de Gaspar Noé, a curta-metragem Carne. A carne que o protagonista vende é ainda a de cavalo, parece que muito apreciada por aqueles lados. O cavalo é também dos animais mais belos com o seu nobre porte. Dir-se-ia quase humano. A analogia entre o homem e este animal é determinante para Noé passar a leitura que dá da condição humana. Vimos a este mundo como quem chega a um matadouro. As imagens estão contaminadas de vermelho-sangue ou de um verde doente, nauseabundo, sufocante. Um dos intertítulos recorrentes avisa-nos que dentro de segundos as imagens poderão tornar-se insuportáveis. É o momento de catarse poética pela via da crueldade (recordando de novo o Taxi Driver, e a sua alucinada chacina final). E também aqui há um depois. O momento que se sucede ao extremo do horror: que pode ser descrito como o instante em que Gaspar Noé faz nascer uma flor de uma pedra. Se existe corrente estética onde a obra de Gaspar Noé pode ver-se incluída, só pode ser a do Romantismo. O que está em causa é sempre a operação de resgate de uma alma que atravessou o "matadouro" onde foi progressivamente delapidada da sua dignidade, mas para a qual não se extinguiu a possibilidade de redenção. É um processo que Gaspar Noé filma como o resgate de qualquer coisa que existe no interior dos seus protagonistas, e como se estivesse igualmente dentro de cada um de nós.

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