11.11.2008

Nunca mais


















O gato na imagem chama-se Nevermore (nome real ou fictício) e é um dos personagens de Histoire de Marie et Julien. Imagino que o gato pertença ao realizador, assim como é provável que grande parte do filme tenha sido rodado na casa onde Jacques Rivette vive (ou vivia na altura). Há qualquer coisa de extremamente doméstico, de acolhedor no filme, apesar da invulgar quantidade de relógios - e das divisões que parecem esconder segredos como na história do Barba Azul -, que se vêem e que fazem parte do métier de Julien, um relojoeiro, e que dão afinal conta das afinidades entre duas actividades que lidam com o tempo: sendo o cinema obviamente a outra. Histoire de Marie et Julien é feito de uma quantidade de elementos significativos que, estou certo, levarão a que apenas com sucessivos visionamentos seja possível dar com novas chaves de leitura. É um objecto íntimo e secreto sobre o qual o próprio Rivette se escusa a elaborar: a entrevista que consta dos extras da edição DVD da Artificial Eye é elucidativa do desconforto que o realizador sente em interpretar tudo aquilo que constitui esta obra. Mas para início de conversa posso sugerir duas vias: a da erotização tortuosa do Vertigo de Hitchcock, e o seu reverso que é a erotização pela palavra na presença do corpo feminino que tem por vértice a cena inicial de O Desprezo de Godard, onde Michel Piccoli enumera (mas é ela que enumera e ele que responde enamorado) as várias partes que gosta no corpo de Bardot que está deitada nua a seu lado. Se a primeira representa a impossibilidade de repetir o êxtase original (nesse sentido qualquer mulher carrega o peso de outra mulher perante a qual o nosso coração perdeu a virgindade que, sobretudo esta, não se recupera), a segunda diz respeito ao desejo de possuir um corpo nomeando-o elemento por elemento como que os fazendo, todos, nossos para sempre. Marie é alguém que reentra na vida de Julien que talvez não tenha deixado alguma vez de estar apaixonado por ela. Quando descobrimos Julien, ele é em tudo a imagem do solitário que vive na companhia única do seu gato: Nevermore, "nunca mais". O nome do gato parece sugerir que o dono não quererá voltar a apaixonar-se, a não ser por Marie (paixão revivida porque recriada em sonho; este filme começa com uma cena onírica), o único amor da sua vida. Daí para a frente, e num registo em que até os elementos surrealizantes desarmam pelo modo naturalista como Rivette com eles joga (reunido uma vez mais com esse mago da iluminação natural, lá está!, que é William Lubtchansky), Histoire de Marie et Julien parece tratar da possibilidade ou impossibilidade de se viver uma segunda paixão como se fosse a primeira. Marie tem o corpo da Marie original e transporta um passado que não é inteiramente comum a Julien. Mas tal como no filme de Hitchcock ela já não é nem pode ser a mesma. Mas Rivette é mais radical que Hitchcock pois formula a hipótese de uma única mulher nunca ser a mesma duas vezes, e a de qualquer história de amor poder apenas ser reformulada e nunca recuperada: ainda que os amantes se repitam. E para um romântico como Jacques Rivette isso representará uma dolorosa constatação que apenas o cinema de alguma forma poderá exorcizar. Histoire de Marie et Julien é filme a rever e a repensar, porque uma semelhante interpretação sobre os grandes filmes talvez nunca se repita.

Arquivo do blogue