4.26.2007

Shakespeare aos tiros no Inferno
















Jellon LambOh, he sits up there in those melancholy hills; some say he sleeps in caves like a beast, slumbers deep like the Kraken. The Blacks say that he is a spirit. The Troopers will never catch him. Common force is meaningless, Mr. Murphy, as he squats up there on his impregnable perch. So I wait, Mr. Murphy. I wait.

As palavras são de Nick Cave, mas na boca de John Hurt (Jellon Lamb, caçador de prémios) dissolvem-se em impuro Shakespeare. Ouvem-se e vêem-se no estupendo western, The Proposition, que tem lugar entre os céus e o Inferno australiano de finais do século XIX, filmado por John Hillcoat a partir de um argumento original de Nick Cave (os dois voltaram a reunir-se no projecto Death of a Ladies Man com data de produção prevista para 2009). A paisagem parece a de um cenário pós-apocalíptico onde não se imagina que o homem possa sobreviver. Um espaço de morte, deserto, calor demencial, pontuado pelo enlouquecedor ruído das moscas que estão por todo o lado. Um país em processo de colonização que os ingleses querem civilizar mesmo que à força. Uma terra selvagem de onde sairão todos a perder - sete palmos abaixo da terra ou à mercê do batimento das poeiras e do apetite dos predadores - e onde a diferença entre ser-se bruto ou sofisticado passa exclusivamente pela percepção de que a morte virá já a seguir e de modo sangrento. The Proposition figura uma espécie de mundo original olhado por um misantropo (Cave, também autor da minimal e desengonçada óptima banda-sonora). Filmado por outro misantropo (Hillcoat). Não é possível evitar odiar a humanidade representada no filme. Gente que sobrevive pela manifestação dos instintos que aproximam homens e animais – seres de espécie idêntica, diria Darwin (citado no filme), separados por um degrau de evolução que pode ser descido a qualquer momento. A acção tem lugar dias antes do Natal, ocasião apropriada para marcar o desfecho com a cor vermelha do Juízo Final. E notável é também o modo como Hillcoat e os actores do filme – Guy Pearce, Emily Watson, Danny Huston, Ray Winstone, além de John Hurt e restante elenco – nos deixam perceber a sua condição de condenados à partida. Como se ninguém além dos indígenas e dos animais pudesse sobreviver ao cenário que rejeita com indiferença o homem branco. O homem estranho que com propósito civilizacional irá inscrever um historial de violência na terra australiana: que o despreza e que o obrigará a pagar caro preço por se deixar transformar. The Proposition é a versão épica e cruel dessa impossibilidade original. A Austrália que hoje conhecemos representa apenas a ponta do deserto primitivo em volta, interior. Trata-se do continente onde é ainda possível experimentar o pioneirismo de outros tempos. The Proposition é por isso perfeitamente actual, sendo simultaneamente shakespeareano na sua dimensão trágica e íntima, e bíblico na apropriação do grande gesto terminal e castigador. Pessimista. Fabuloso.

Thanks, mate.

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