Tenho uma tatuagem nova e um disco dos The Smiths.
11.30.2012
11.29.2012
11.27.2012
Vai e vem
Danação (1988) é daqueles objectos para deixar parva a alma. Começa com a imagem de um teleférico que se desloca em movimento circular longilíneo, que vai e volta, transportando carvão. A derradeira cena mostra um homem quebrado em confronto com um cão, a ver quem afugenta o outro com o seu ladrar. Há muitos cães e muita música neste filme de Béla Tarr, hipnótico e filosófico, com um enredo que quase não se intromete na fruição nossa existencialista.
Impecável e decadentemente coreografado, dá a sensação de que Tarr comunica com o trabalho de Pina Bausch, da altura ou por vir. Danação é ao mesmo tempo valsa inebriante e triste, não propriamente desesperada, antes resignada com o absurdo da vida. Nota-se ainda a adoração que Tarr nutre pelo cinema de Andrei Tarkovsky, mas o que testemunhamos é da ordem do encontro de inteligências ímpares.
Mesmo visto no ecrã do televisor dá para sentir a carga plástica, os cenários desoladores que são expressão de existências sem sentido, a chuva que não pára de cair e que empurra as personagens para a clausura dos espaços onde uns dançam e outros bebem. Muita bebida, longas conversas poéticas que se modelam nos sons e nas imagens num todo abstracto. E porque é que isto é tão bom? Béla Tarr é um mestre coreógrafo que parte da fisicalidade dos elementos (use-se a expressão fisicalidade com propriedade que não é de todos) para dar a sentir o movimento interior do mundo. Uma ordem universal e antiga que governa aquilo que somos. Vamos e vimos sem resultado algum, perpetuando essa determinação que nos ultrapassa.
11.26.2012
Amor de cor
Paixão é uma celebração partilhada da fantasia que fazemos de nós. Amor o embate com a realidade que vem do outro. Destrói a fantasia mas é muito mais verdadeiro. Donde se conclui que amor-próprio é uma falácia. A paixão dos cobardes.
Fototerapia
Tal como as lâmpadas que se usam na terapia da depressão sazonal, auxiliando à produção de serotonina, é uma luz que apetece manter ligada e indiferente à intermitência da atenção que lhe prestamos. Sons que até a retina capta.
Deste lado da ressurreição
Na sua anterior aparição enquanto actor, Gran Torino (2008), Walt Kowalski (Clint Eastwood) era morto num final sacrificial, crivado de balas, em câmara lenta, como o fizeram (fazendo história) o Peckinpah de Wild Bunch (1969) ou o Arthur Penn de Bonnie and Clyde (1967). Grand Torino seria igualmente promovido como a última vez que veríamos a mítica figura de Eastwood na tela branca, decisão que o próprio revogaria sem alarde quatro anos mais tarde. A pergunta que se impõe é menos o que terá levado Clint a voltar com a palavra atrás mas porque razão não terá sido Clint Eastwood a realizar As Voltas da Vida/ Trouble With the Curve? O filme é composto de muitos dos principais temas do seu cinema – o envelhecimento, a dificuldade de comunicação entre gerações e a necessidade de haver uma passagem de testemunho entre elas, como se todos tivéssemos que deixar a casa arrumada antes de partir em direcção ao desconhecido. Falar disto tudo revelando a capacidade de dar a sentir a presença do “lado de lá”, assegurada pelo próprio Eastwood que se assumia espectro entre os vivos, implicou sempre um elemento de transcendência que As Voltas da Vida não tem nem quis ter. É um filme simpático e ligeiro, que vibra mais intensamente com as rabugices do velho Gus Lobel (Eastwwod) e os seus valores fora deste tempo, algo que Clint não enjeitaria realizar nas décadas de 70 e 80, mas que preferiu passar ao seu habitual colaborador Robert Lorenz, rodeado pelo habitual staff da Malpaso como se de um filme de Eastwood se tratasse. E temos direito à ressurreição do Clint actor, em modo menor, o que não deixa de constituir motivo de celebração. Aleluia.
11.23.2012
Julião Sarmento
Os primeiros 3':30'' do vídeo R.O.C. (40 plus one) podem ser visionados aqui. O resto é filosofia.
11.22.2012
Conta, peso & medida
Na casa dos meus pais houve muitos anos uma empregada residente que se ocupava de nós até que ambos chegassem juntos do trabalho, e que assegurava, por exemplo, pesando o prato de cada um, que nenhum dos três comia menos que os outros irmãos, seguindo critérios da dona da casa. Aplico-os agora à leitura destes livros, dispensando atenção repartida e semelhante pelas suas páginas. Afinal diz-se que só os melhores se equivalem e assim, fazendo um agrado à memória materna, traduzo igualmente na prática o sensato exemplo da voz corrente.
Por isso te digo que não te perturbes, nem tenhas remorsos dos teus sentimentos. Desde a Grécia clássica e passando por Freud, por mim, por ti, e pelos muitos que hão-de vir, o viver é um encadeamento de «assassinatos» que felizmente se não cometem.
JRdC
MAP
11.21.2012
11.19.2012
Penélope sou eu
Tal como diria um antepassado longínquo de Gustave Flaubert, também eu preferiria o papel de Penélope ao de Ulísses (sem que isso me garantisse maior sossego).
11.14.2012
11.13.2012
Avatares do desejo
Existe uma personagem em particular que permite perceber até que ponto o radicalismo de um filme como Holy Motors (2012) é doce. Refiro-me a Merde, protagonista desconcertante da curta-metragem de Leos Carax de 2008, que se entrega agora a uma demanda romântica e casta que tem por objecto de desejo a norte-americana Eva Mendes. Reconheço que esperava maior desconcerto deste filme, até porque o rótulo de “cineasta maldito” que se colou a Leos Carax após Les Amants du Pont-Neuf (1991), com a apoteose para os muitos desgostos que é Pola X (1999), com música de Scott Walker, fazia antever as mais inesperadas surpresas.
E Holy Motors começa mesmo bem. Com filas de espectadores catatónicos numa velha sala de cinema, e Carax, lui-même, a premir com a sua prótese metálica o botão que nos faz aceder a um universo paralelo ocupado por “avatares do desejo”, que se deslocam de limusine preenchendo dias e noites saltando de ficção em ficção. Merde está numa delas, e são todas investidas com o corpo plástico, bizarro e atlético de Denis Lavant, cúmplice de Carax desde a primeira hora. Passada a estranheza, ou integrada a estranheza, o filme encaminha-se para território emocionalmente familiar, querido até (como num circo intelectual, um circo crepuscular; e nunca, defeito meu, amei o circo) tão controlado como os primeiros filmes do francês. Uma provocação que quer ser amada. Carax terá conseguido o seu intento, ao passo que em parte perdi o meu filme. Hélas. Hélas.
Mostrado no âmbito do Lisbon & Estoril Film Festival.
11.12.2012
11.11.2012
Freddie confronta o Mestre
Mesmo que falando só de mim para comigo teria dificuldade em dar uma resposta convincente à saída do último Paul Thomas Anderson, The Master, apresentado na noite de abertura do Lisbon & Estoril Film Festival. Mais inclinado para ter gostado do filme, sem dúvida, e mais decisivo o facto de dias depois não me ter abandonado. Continuo sob um efeito de estranheza e às voltas com as suas mais profundas ligações. Paul Thomas Anderson continua a levar-se bastante a sério (haverá filme em que não o faça?; talvez apenas no Punch Drunk Love (2002) e em momentos de prazer puramente sensual que fazem o melhor de um dos seus títulos fortes, Boogie Nights (1997). PTA aponta os faróis ao cinema de Stroheim, Welles e Kubrick e é justo que se diga que a luz reflectida não encandeia um objecto como The Master. Um filme que é mais que um filme, uma obra de arte, goste-se ou não se goste: objecto denso, complexo, opaco, que exige concentração demorada porque aquilo que sucedia com Magnolia (1999), sermos conduzidos de queixo caído por um realizador que parecia controlar com virtuosismo a totalidade das nossas reacções, encontra-se no exacto extremo oposto de The Master, para onde somos atirados e onde nos temos de orientar ou então rejeitamos a proposta.
Muito se falou de cientologia a propósito da sua produção e estreia veneziana (de onde saiu com o Leão de Prata para o realizador e o Prémio de Melhor Actor repartido pela dupla de protagonistas), mas nunca tal expressão é escutada ao longo do filme. Há sim a observação distanciada do funcionamento de uma seita mística/ religiosa e do seu líder, Lancaster Dodd (superlativo Philip Seymour Hoffman uma vez mais, muito próximo do Orson Welles actor, nunca se tornando cópia apenas espírito e presença) mas sobretudo a história de "amor" entre dois homens que se reconhecem nos seus ímpetos e fraquezas. Freddie Quell (Joaquin Phoenix prossegue num trabalho de composição feito de imprevisibilidades hoje menos imprevisíveis) junta-se a Lancaster Dodd mais ou menos por acidente após ter regressado da Guerra, que funcionara como uma espécie de suspensão numa vida que necessariamente incorreria em desajustamento e frustração. Quell personifica a natureza selvagem de Dodd, que este tentará domar como alguém que não sabemos o terá feito com ele. O trabalho é de paciente violentação psicológica e condicionamento físico igualmente repetitivo, no interior da família e seguidores próximos de Dodd que ao contrário do chefe não chegarão a adoptar Freddie, olhado sempre pela excentricidade do seu temperamento entre o acólito e o brutamontes. E há depois a história do próprio Freddie Quell, a mãe encerrada num hospício, a rapariga que nunca chega a ser namorada de quem se despede ao ir para a Guerra, objecto de uma redenção que por intermédio dela não virá a acontecer mas que espreita no final de The Master, numa cena de cama bonita entre Freddie e a mulher inglesa que conhecera num bar. Aquele ser reprimido que a seita do Mestre nunca conseguira "consertar" tem ali um primeiro episódio de reconciliação com a vida. Uma mulher comum, sentada sobre ele, que lhe proporciona prazer e alegria.
Quase como se Paul Thomas Anderson virasse o enigma que The Master representa do avesso, resolvendo-o da forma mais universal possível. E é porque o filme nos atinge (a alguns) que o que está para trás se abre em perspectiva e aos poucos revela implicações que pareciam escondidas ou inexistentes. Perguntar-me-ei de novo daqui a uns meses a importância que The Master tem para mim. Desconfio que é um daqueles filmes que só o tempo permitirá chegar a mais justas conclusões.
11.09.2012
11.08.2012
O albino da família
Uma obra artística define-se somente de duas maneiras: em relação ao seu tempo de criação ou através do tempo que por ela passa depois. Os cépticos preferem confiar na segunda hipótese, salvaguardando-se de eventuais equívocos. Os cépticos não são chamados para um filme como Le Havre (2011). Há um milagre neste filme, menos importante que o milagre do surgimento de uma obra com estas características em tão desgraçados tempos como os que vivemos. O filme de Aki Kaurismäki pode até apelar a um passado que a humanidade nunca experimentou fora do cinema. O seu tema é o da corrente de solidariedade que torna tudo possível. Mesmo que isto não tenha aplicação na vida real, vale a pena regermo-nos por alguns dos seus valores, ou despertá-los momentaneamente ao nosso olhar e no coração. A estética é no caso de Kaurismäki também uma ética. Um modo de resistir aos tempos actuais: ao individualismo, à competição cega, à falta de esperança. Le Havre define-se para já da única forma possível. São os tempos actuais que lhe conferem o estatuto de obra de excepção. Caso raro. Enorme e bela ilusão. A humanidade resgatada pelo cinema. O “albino” que contagia com o sentido solidário de família (alternativa) o resto.
11.06.2012
11.05.2012
A boémia vai bem quando calha
Mesmo em se tratando de um registo romanesco à moda de Kaurismäki, A Vida de Boémia/ La Vie de Bohème (1992) é dos seus filmes onde se sente mais a passagem do tempo. Existe o subtexto operático segundo Puccini (existe uma mulher chamada Mimi), e todo o imaginário que associamos com a boémia artística parisiense, embora parodiada por Aki Kaurismäki, autor difícil de caçar num momento em que se leve a sério.
Uma ocasião cruzei-me com um conhecido num restaurante bastante bom, que deixei de frequentar. Disse-me que estava ali a gastar o último dinheiro que tinha, destinado a lhe proporcionar aquele prazer. A isto chamo eu de ética boémia: quando há dinheiro gasta-se no que dá prazer aos sentidos, e quando o dinheiro falta sobrevive-se o melhor que se pode. É bonita a ética boémia, apesar de um pouco irresponsável. A Vida de Boémia ilustra-a fielmente sem se querer passar por objecto de prestígio. Cabe ao espectador estabelecer essa identificação, ou não.
O que não tem que ser tem a mesma força
Quando se tem o coração acertado pela “kuarismakilândia” é difícil não ser conquistado por qualquer dos títulos do finlandês. Não há filmes de Aki Kaurismäki de que goste mais que os que se passam em Helsínquia ou arredores, pois nada serve tão bem o seu cinema como a fisionomia e a língua dos conterrâneos. Sucede também que o imaginário convocado pela palavra “kaurismakilândia” deu provas várias de poder ser exportado, o que não desvirtua quer em termos poéticos quer plásticos este cinema anacrónico tão particular.
Mesmo um exercício de estilo ligeiramente desviado do resto da obra do autor como é Contratei um Assassino, cuja história é a do homem que estabelece um contrato para pôr termo à vida, situação que remete para o contexto do film noir, vai-se encaminhando para o território do melodrama à maneira de Aki Kaurismäki, onde a fragilidade e a solidão das vidas anónimas são investidas de dignidade e resignação, até que se prefigure algo da ordem da esperança que não chega nunca a ser um final feliz, apenas a possibilidade de continuar existindo num outro lugar. Isto para os que continuarão vivos, mesmo que tenham desejado muito a morte. Já os que não têm remédio, como o assassino que descobre ser portador de doença terminal, estão condenados à efemeridade dos insectos, demarcando-se destes pelas decisões tomadas no tempo que resta.
O assassino, que se confessa um homem falhado, é a grande personagem deste filme, uma sombra nas peripécias da vida de Henri Boulanger (Jean-Pierre Léaud), bem mais trágico no seu périplo obstinado porque a morte que lhe está destinada implicou um contrato de que foi parte excluída. Por isso o seu único tiro é tão significativo. Um disparo que dá a vida. Um momento que tinha que acontecer.
O assassino, que se confessa um homem falhado, é a grande personagem deste filme, uma sombra nas peripécias da vida de Henri Boulanger (Jean-Pierre Léaud), bem mais trágico no seu périplo obstinado porque a morte que lhe está destinada implicou um contrato de que foi parte excluída. Por isso o seu único tiro é tão significativo. Um disparo que dá a vida. Um momento que tinha que acontecer.
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