Em Killer Joe não há inocência perdida porque nesta América ninguém é inocente (a rapariga na imagem, usada como moeda de troca e tida por pobre de espírito, é personagem elucidativa do jogo perverso a que iremos assistir). William Friedkin chega a este material pela via do seu filme anterior, Bug, que também adaptava uma peça de teatro de Tracy Letts. Mas isto não é teatro filmado; isto é cinema em toda a ferocidade. O filme tem grande energia visual, suga uma imensa iconografia pulp e trash para nos servir uma farsa amoral como já não se via desde Wild Things (1998) de John McNaughton. São filmes arriscados, que rebentam os limites da verosimilhança de horizontes estreitos, e que o fazem para dar um retrato da humanidade desprovida de valores, onde homens e mulheres se relacionam não de forma distinta dos animais. Não se pode falar de ambição porque é gente que não sabe o valor do dinheiro. Não sabe o valor dos afectos. Não sabe o valor da lealdade. Age por coação e pelo cio. E a este cenário chega Killer Joe, numa interpretação de Matthew McConaughey que deixará boquiaberto quem se lembrar dos seus papéis de galã vagamente oleoso, mas com estilo, na década de 90. Killer Joe é um agente da lei que aceita assassinatos por encomenda. Uma figura onde o bem e o mal se misturam, mas que sobressai do conjunto por se reger por uma ética onde não cede um milímetro. Quando a fúria justiceira de Joe se abate sobre a família que lhe encomendara a morte da matriarca, para os seus elementos tomarem posse de um seguro de vida que não aproveitará a ninguém, está criado o ambiente onde terá lugar uma última ceia que não estou seguro ainda se significa o momento em que o filme se ganha em definitivo ou se nalguma medida se perde. Uma última ceia de contornos Grand Guignol que não se recomenda a tripas sensíveis. Quem olhará para um pedaço de Kentucky Fried Chicken da mesma forma depois deste filme?
Nota longa: da programação de antestreias do Lisbon & Estoril Film Festival tivemos oportunidade de assistir ao último filme dos irmãos Dardenne, Le Gamin au Vélo, reconhecível do método dos belgas de fazer cinema a partir de nacos de realidade encenada, mas que está fora dos melhores filmes da dupla porque se limita às deslocações do protagonista pelo meio de figuras secundárias que não deixam marca, sendo todo o trajecto do filme um pouco vazio de sentido; ao melhor filme de George Clooney até hoje, The Ides of March, embora se trate de um objecto bem comportado, que obedientemente actualiza os pergaminhos do cinema liberal da década de 70, e que dá a ver grandes actores mas não grandes personagens. As situações são adultas, pena que o tratamento visual e dramatúrgico as simplifique e lhes atribua um carácter exemplar; finalmente o filme onde Cronenberg se senta com Jung e Freud para tomar chá. David Cronenberg compareceu à sessão para apresentar A Dangerous Method e sublinhou a rigorosa investigação que esteve na origem do seu filme. A sua fidelidade. É de facto impecavelmente reconstruído nos cenários, objectos e linguagem. As interpretações de Michael Fassbender e Viggo Mortensen resultam o quanto baste. Keira Knightley mostra pela primeira vez que é actriz de nervo. Os resultados, hélas, não condizem na medida em que o filme se encaminha para um aborrecido alinhar de conversas científicas e sentimentais. Christopher Hampton, que adapta ao cinema uma peça de sua autoria, podia ter sido menos possessivo e dado ao texto uns valentes cortes. Fica a sensação de que em vez de cortar acrescentou, e isso contribui para a impressão de objecto escolar que progressivamente silencia a plateia em busca dos habituais estímulos da obra cronenberguiana.