12.31.2008

Do cavalheiro Sarstedt

You talk like Marlene Dietrich
And you dance like Zizi Jeanmaire
Your clothes are all made by Balmain
And there's diamonds and pearls in your hair

You live in a fancy appartement
Of the Boulevard of St. Michel
Where you keep your Rolling Stones records
And a friend of Sacha Distel

But where do you go to my lovely
When you're alone in your bed
Tell me the thoughts that surround you
I want to look inside your head

I've seen all your qualifications
You got from the Sorbonne
And the painting you stole from Picasso
Your loveliness goes on and on, yes it does

When you go on your summer vacation
You go to Juan-les-Pines
With your carefully designed topless swimsuit
You get an even suntan, on your back and on your legs

When the snow falls you're found in St. Moritz
With the others of the jet-set
And you sip your Napoleon Brandy
But you never get your lips wet

But where do you go to my lovely
When you're alone in your bed
Tell me the thoughts that surround you
I want to look inside your head, yes I do

Your name is heard in high places
You know the Aga Khan
He sent you a racehorse for christmas
And you keep it just for fun, for a laugh haha

They say that when you get married
It'll be to a millionaire
But they don't realize where you came from
And I wonder if they really care, or give a damn

But where do you go to my lovely
When you're alone in your bed
Tell me the thoughts that surround you
I want to look inside your head

I remember the back streets of Naples
Two children begging in rags
Both touched with a burning ambition
To shake off their lowly brown tags, yes they try

So look into my face Marie-Claire
And remember just who you are
Then go and forget me forever
'Cause I know you still bear
the scar, deep inside, yes you do

I know where you go to my lovely
When you're alone in your bed
I know the thoughts that surround you
'Cause I can look inside your head

O amante de Lady Brolin


Feliz ano novo


Trágico é o homem achar-se ridículo


























Breezy é a terceira longa-metragem de Clint Eastwood como realizador. Talvez o seu filme menos conhecido, teve rodagem colada à de High Plains Drifter (um western, sempre mais expectável da parte do "homem sem nome"), o que proporciona que uma das suas cenas tenha lugar num cinema onde o par protagonista se prepara justamente para assistir a High Plains Drifter: espécie de brincadeira hitchcockiana. Breezy trata do envolvimento amoroso entre uma jovem hippie de grande coração e desmesurado optimismo que vagabundeia pela região da Califórnia, e um cinquentão divorciado, mais autónomo e cínico do que todos os seus amigos. História de amor improvável, de um improvável amor, alguns diriam até que inverosímil, que Eastwood procura defender colocando-se ao lado da estupenda Kay Lenz/ Breezy (num papel que teria muitas possibilidades de se tornar tonto, tornando-se num retrato de "menina selvagem"). Sucede que o argumento de Jo Heims aliado à direcção de Clint Eastwood, particularmente desperta para não condescender no tratamento do confronto de gerações, nos apanham com algumas soluções inesperadas. Uma delas encaminha-nos para um quarto de hospital onde Frank (William Holden) visita uma mulher a quem esteve ligado antes de Breezy, que acabara de perder o marido no acidente de carro onde ela igualmente ficara maltratada. A conversa entre os dois leva a que a mulher confesse que embora tivesse casado por comodismo tinha ficado a gostar muito do marido. Era casamento em que Frank não depositava quaisquer expectativas, tomado por um igual cinismo que o levara a achar despropositada a sua afeição por Breezy. Este momento determinará uma mudança de atitude da parte de Frank face à prova de que o amor pode vingar para além das nossas diminutas expectativas. E um Frank moderado no seu cepticismo partirá em busca de Breezy. O filme de Eastwood toma assim partido pela liberdade conquistada para lá das convenções sociais, e uma vez vencido o constrangimento de um homem poder sentir-se ridículo. Como o próprio Frank diz a certa altura, "people never mature, they just grow tired".

12.30.2008

Identificação de um fado
























É corajoso da parte de Helder Moutinho, que ainda por cima é pessoa que está por dentro das áreas que dizem respeito à gestão de uma carreira artística, fazer lançar o seu disco discretamente e numa altura em que já não vai a tempo dos balanços de 2008, e poderá muito bem ficar esquecido na panorâmica de edições do próximo ano. Nada posso acrescentar relativamente às responsabilidades do risco corrido, apenas ir contra ele e dar eco das minhas primeiras impressões sobre o disco. Que fado é este que trago? é o degrau que se segue a Luz de Lisboa, um belo disco de fado, coeso, que se encontra no topo das minhas preferências do ano de 2004. Parece-me de novo que Helder Moutinho corre numa outra pista, embora concorra para o vigor que o fado recuperou de há alguns significativos anos a esta parte. Esse percurso paralelo, aparentemente liberto de pressões que ele por certo sentirá ao se ocupar da carreira de outros companheiros seus do fado, permite-lhe tomar as opções motivadas por cada novo disco, por exclusivos conta e arrojo. É isso que se sente ao escutar Que fado é este que trago?, uma interrogação a que ninguém, melhor do que o próprio Helder Moutinho, pode dar resposta. Ele que nasceu num berço de fado, que tem nos irmãos (Camané e Pedro Moutinho) duas das vozes mais distintas do género, que se mantém na vivência que acrescenta tarimba e genuinidade, que escreve e que passou a musicar também, numa polivalência gerida com a parcimónia que o respeito pela tradição lhe inspira. Helder Moutinho é intérprete sério de costela renovadora. Destaca-se nos fados tradicionais que são e serão sempre o chão mais sólido. Não se inibe de trazer para o fado instrumentos como o acordeão, o que poderá não ser inédito, mas que se saúda porque nunca é seguro que o corpo do fado não rejeite este tipo de experimentação; e de permitir o protagonismo de uma nova geração de músicos (como Ricardo Parreira) ou de letristas (como Diogo Clemente e Luiz Caracol) que dão boa conta da confiança neles depositada. O resto, que é muito, é só e exclusivamente de Helder Moutinho: muitas palavras, algumas melodias, e uma voz cada vez mais funda e verdadeira. Que fado é este que trago? Este fado é propriamente ele.

Quanta melancolia


























Chegados à página 74 temos a confirmação de que o marcador do livro em forma de régua é mesmo para aquilo que tão bem serve.

12.29.2008

Memória contra o esquecimento


















É um filme que em tempos (mais rigorosamente até ontem) cheguei a pensar que não fazia justiça ao resto da obra. Que se coloca do outro lado do espectáculo, e que não deixa de ser ele próprio espectacular. Uma cena privada que trata daquilo que não se conta a ninguém, que fica apenas com aqueles que a viveram. Clint Eastwood bate-se no díptico de Iwo Jima pela história individual. Porque é aí que a memória se funda. Pela possibilidade do testemunho (da sua passagem, tema maior da obra eastwoodiana) forçando algumas mais que compreensíveis resistências. Com consciência de que a vida é engrenagem que depressa produz ou reproduz esquecimento. Pensem numa coisa aparentemente simples de pensar: a última vez que reflectiram ou experimentaram o sentido da palavra camaradagem.

O penúltimo samurai


























Uma imagem pode levar-nos a questionar a nossa vida. Mas só alguém de carne e osso nos fará considerar a hipótese de mudá-la. Se ela existir, então eu considero.

O ególatra e o seu esplendor


























A verdade é que dispenso a recomendação de outrém para chegar a Philip Roth. Não sendo leitor exaustivo tenho um dos seus títulos ligado a um período intenso da minha vida, talvez o mais extremo que experimentei. Este Indignation respirava já no topo de uma das pilhas (os livros por ler acumulam-se e aprendi a coabitar com o incómodo) quando o comentário de um amigo fez com que pegasse nele no dia seguinte. Li entretanto um terço, seria precipitado dizer se se trata de outro romance notável. Mas há alguma coisa que posso adiantar com segurança. Se quiserem (dirijo-me sobretudo às mulheres) saber como funciona a mente masculina, este livro é absolutamente revelador. Tão revelador que qualquer homem pode dizer que o livro em parte conta a sua própria história: no caso a de Marcus Messner que está lá pela de qualquer um de nós. Numa escrita que desarma com frontalidade e simplicidade (o léxico de Roth está ao alcance de uma pessoa que domine razoavelmente o inglês), Philip Roth revela logo nas primeiras cinquenta páginas o modo de agir da psicologia masculina. Roth expõe-nos, e de caminho comove-nos. Se isto não é um grande autor, outra pessoa me explique o que quer que isso seja.

12.23.2008

A Austrália é nossa
















Portugal desde menino
Foi cavaleiro e campino
Deu cartas como caução
A cavalo, venceu moiros
A cavalo lidou toiros
Foi destemido e pimpão
A nossa história foi toda de lés a lés
Uma vitória do ginete português

Eu cá p'ra mim, não há, oh não
Maior prazer do que o selim e a mulher
Rédeas na mão, sorrir, amar
Trotar, esquecer e digam lá se isto é descer

Rapaziada de agora
Voltem à bota e à espora
Com orgulho e altivez
Deixem as coisas modernas
Arranjem força nas pernas
Trotar é que é português
Quem anda a trote em cima dum bom alter
Leva no bote a mais difícil mulher

(Fado marialva, de Fernando Santos e Jaime Mendes)

12.22.2008

Fantasmas







Para o meu amigo





















«Me gusta la amistad, porque en su cauce mantiene un libre y generoso intercambio de utilidades sin corsés ni reglamentos. Porque es una versión del amor en la que normalmente no se reproducen milagros tan espectaculares como el orgasmo, pero tampoco se da ninguna oportunidad a desviaciones como la posesión o el dominio. (...)
La amistad se hace a la medida de lo que uno necesita del otro y se renueva a diario.»


A entrada corresponde a 1973, data de edição de Per Al Meu Amic, um dos discos de Joan Manuel Serrat na língua paterna. Temos todos os anos mais ou menos por esta altura notícias de Serrat. Quando não sob a forma de disco, outro documento reafirma o seu lugar entre os maiores escritores de canções do mundo inteiro (e o artista parece ser pessoa de grande bonomia também). A caixa com CD's e DVD's da tournée com Joaquin Sabina, editada o ano passado, era incrível e generosa: dava a alguém como eu, que continuo sem ter visto o catalão ao vivo, a possibilidade de assistir a um concerto de 4 horas a meias com Sabina - "dois pássaros de um tiro", tal como a mesma digressão fora baptizada.
De regresso à citação que abre o post, a mesma faz parte do livro Algo Personal, que reúne o cancioneiro serratiano - todas as letras de todos os seus mais de trinta álbuns - rematado com breves entradas de carácter autobiográfico, muitas fotografias pouco conhecidas e ainda raridades como tiras humorísticas que fazem referência ao cantor. Uma edição monumental (volumosa, capa dura e negra, grafismo igualmente sóbrio) que um amigo trouxe há dias de Barcelona e que agradeço como se de uma oferta se tratasse. E que continuarei agradecendo-lhe uns bons anos mais.

quase raro: a primeira vez que me referi a Serrat na blogosfera.

12.19.2008

Aprender com os maiores



















«As songwriter he is influenced by the classic themes to be found in films (evident celluloid reference: Steve McQueen, Heaven Can Wait), musicals (Sondheim, Styne, Rodgers), the great songwriters of yesterday (Porter, Bacharach & David), modern pop songwriters (Webb, McCartney, Wilson) and still finds space to quote Shakespeare (Timon of Athens in Radio Love, Romeo and Juliet's Capulets and Montagues in Enchanted and "Alas! Their love may be called appetite, no motion of the liver, but the palate"). [...] he'd rather listen to Abba, Glen Campbell, Carole King or Laura Nyro than to the flavour of the month.»

Do prefácio do livro de 1993 que devia ser reeditado, se possível aumentado.

12.18.2008

About last night...



















You should really get to know somebody, really be a friend. I mean, my wife is my closest friend. Sure, I'm attracted to her in every way possible, but that's not the answer. Because I've been attracted to other people, and I couldn't stand 'em after a while.

O resto fica para ler na edição em papel. Obrigado, João.

Cowboy dreams





















Charlize Theron por Sheryl Nields.

12.17.2008

Retrato do artista


























Parece-me justo dizer-se que a diferença entre um filme como O Clube dos Poetas Mortos, de Peter Weir, e a adaptação ao cinema da peça de Terence Rattigan, A Versão Browning, é que o primeiro trata de uma história do sucesso (do seu potencial de concretização), e o segundo de uma história do fracasso irremediável. É a diferença, no fundo, entre o carpe diem que ecoará no coração dos alunos do jovem professor John Keating (Robin Williams), e a efémera ovação dirigida a Andrew Crocker-Harris, conhecido como o Hitler of the lower fifth, que conhecerá o vexame sob várias formas, que se sobreporão até ao quase insustentável: trata-se de um texto magnífico sobre a crueldade da vida personificada naqueles que nos rodeiam.
O Clube dos Poetas Mortos é um filme que trata do começo da vida adulta e de todas as possibilidades que encerra. Uma visão cândida. A Versão Browning, no caso em comparação o filme realizado por Mike Figgis (o seu melhor filme, digo eu), é um balanço de vida e uma assumpção da derrota nas diversas frentes. Seria necessário um actor extraordinário para suportar com dignidade o ordálio do "obsoleto" Crocker-Harris. Albert Finney possui a melhor escola de todas que é a dos palcos ingleses. Percorreu as etapas necessárias para facetar a rocha onde a amargura de Andrew foi embutida. E a actualização exercida por Ronald Harwood sobre o texto de Rattigan faz do visionamento desta segunda adaptação uma experiência do nosso tempo cada vez mais presente. A substituição de valores que o filme assinala na celebração do êxito desportivo de um professor que optou por se tornar uma estrela do cricket, relegando para envergonhado segundo plano a reforma antecipada do professor de Cultura Clássica, vislumbra a sociedade do perpétuo entertenimento onde hoje vivemos.
Como é possível aprender a suportar o fracasso na época de todas as ilusões? Talvez somente regressando ao convívio dos Clássicos.

Na imagem o retrato do jovem Albert Finney.

Acreditar no Pai Natal (o senhor de vermelho)


























O presente mais desejado chega só em Fevereiro do próximo ano. Prolonguemos o espírito da quadra e então depois let's change the world with music.

Nota: o senhor de vermelho é Paddy McAloon.

12.16.2008

De cebolada


























Hoje almocei de frente nas costas dela.

[Cláudia Vieira retratada por Roberto Santorini.]

O amor em tempos de crise




















«Duas ou três por semana viajavam, contou-nos uma tarde, enquanto tomávamos a bebida dos fins-de-semana. A coisa passava-se da seguinte maneira: tinha comprado dois assentos de avião em segunda mão, desses que os Transportes Aéreos vendem em saldo para fazer um dinherinho extra. De vez em quando, às nove da noite, colocavam-nos em frente à televisão e instalavam-se. A mulher abria uma coca-cola e ele entregava-se a uma tónica. Viajavam em classe turística e não tinham direito a bebidas alcoólicas, excepto uma ou outra vez em que estavam mais abonados. À meia-noite aterravam. Fechavam a televisão e iam até à cozinha. Conforme a terra a que tinham chegado, assim Raina preparava o prato especial. Havia noites de sopa de cebola com arenque no molho, noites de hamuss bi tahine, de borsch, até de feijoada com laranja, cachaça e tudo. Às três da manhã, após terem discutido todos os problemas do país na língua do mesmo, claro, e admirado a vista pela janela, empanturrados, saíam do restaurante exótico e iam para o hotel, isto é, para a cama. Na manhã seguinte, felizes, beijavam-se e seguiam para as respectivas tarefas profissionais.»

[BABELITE ou SEGISMONDO O BABÉLICO, de Mário-Henrique Leiria, in Contos do Gin-Tonic.]


embora prefira passagens como esta:

«Conversámos todos ao mesmo tempo, durante bastante tempo. Bebemos também quase ao mesmo tempo, enquanto falávamos ao mesmo tempo.
Saímos de madrugada, com mais abraços e algumas incertezas quanto à porta do elevador.»

[do mesmo]

12.15.2008

Nada estranho


















Nada do que é humano é estranho ao septuagenário Merle Haggard. Chegou a ir preso (algumas vezes) antes de iniciar uma carreira fulgurante que hoje se mantém num nível muito digno de respeitabilidade: Tom Waits encabeça a sua lista de fãs. Olha-se-lhe para o rosto e é como se a sua história estivesse à vista de todos, naquela cara de Bukowski hoje talvez apaziguado. Haggard tem lugar entre os maiores, e porventura apenas o facto de se ter mantido firme no género country explique que não seja tão celebrado quanto, por exemplo, Johnny Cash. O tempo daqueles cuja obra é produto da vida (ao contrário dos produtos de agora, de criação expontânea e vida breve) está-se a acabar.

Transa atlântica

Pagou para levar para a cama o livro de Mónica Marques.

As marcas do crime


























Eles viram. Eles viram-no. David Cronenberg e Viggo Mortensen por certo que terão tido ambos contacto com o documentário de Alix Lambert que trata um assunto até aqui clandestino: o das tatuagens dos presidiários russos, e da forma como isso representa uma inscrição na carne das suas vidas de crime. É um abismo onde se cai, e de onde tantas vezes se não sai. Lambert entrevista vários condenados, de ambos os sexos, e gente ligada ao aparelho penal da ex-União Soviética. A frontalidade com que se filma um corpo tatuado é a mesma usada pelos interlocutores que carregam um passado de criminalidade e reincidência: morte e roubo, sobretudo. O tom geral é fúnebre, em parte pelas narrativas sem futuro, noutra parte pela perda da ética verificada com a entrada do novo dinheiro neste circuito. O aspecto redentor de uma deontologia defendida pelos "criminosos de lei" ou vor v zakone, foi substituído pelo total alheamento desses valores posto em prática pelos condenados recentes, a maior parte originários do negócio da droga. The Mark of Cain notabiliza-se sob dois aspectos principais: primeiro é surpreendente que Alix Lambert tenha obtido autorização para filmar nas prisões documentadas, representativas de uma existência nos limites da esperança (ou até mesmo para além desta); depois porque o seu olhar mantém uma distância decisiva que permite que o assunto seja simultaneamente fascinante ou desolador aos olhos de quem vê. Reforce-se a existência de um terceiro aspecto que sendo menos sensível na aparência, acaba revelando-se taxativo na análise de Lambert. Se o realizador terá procurado honra e dignidade, estas foram sendo sacrificadas por obra do oportunismo e da vã glória. Na era de todos os simulacros, menos ainda se pode confiar nas tatuagens dos homens. Elas passaram a mentir e nalguns casos a inventar passados.

Honky tonk blues


















Vi os primeiros exemplos do que então se veio a designar por (novo?) cinema independente americano, nas décadas de 80 e 90. É claro que os autores que impuseram marcas de estilo mais visíveis - como Tarantino, Hal Hartley, Jarmusch ou Spike Lee - vieram a adquirir uma projecção que pode deturpar a noção deste cinema independente se tomada na essência: histórias pessoais que dão a impressão de terem sido vividas, de tal modo elas surgem na tela libertas das fórmulas cinematográficas de grande consumo. O cinema independente norte-americano é aquele que vai às raízes do melhor que a América produziu na década de 70, quando o sistema foi tomado de assalto pelos "movie brats" - Scorsese, Coppola, Spielberg, Cimino -, mas também por gente igualmente cinéfila, embora menos dada ao estrelato, como Robert Altman, Bob Rafelson, John Cassavetes ou Hal Ashby. E então aí, das duas uma: ou era a visão do realizador que se impunha pela originalidade e pela pujança do seu "storytelling", ou a aposta passava pela pequena história que ao desenrolar-se em frente aos nossos olhos, nos fazia sentir parte dela uma vez que a empatia estabelecida entre personagens e espectador era forte, assim como também o era o efeito de real recuperado para o cinema já não tanto por via do artifício (isto porque o cinema é sempre artifício, construção, mimetismo), mas pela colocação da tónica no tempo e na duração das cenas que possibilitavam a maior complexidade dos personagens e das situações. Reconhecendo partes de nós naquelas figuras, o cinema punha-nos a olhar justamente para dentro de nós. Tratavam-se de filmes nossos semelhantes. Encontrei recentemente outro exemplo que reúne algumas destas virtualidades no primeiro filme de Joey Lauren Adams (para quem se lembrar, a actriz de Chasing Amy que tem aquela adorável voz de cartoon), cujo título é Come Early Morning, e que anda a ser vendido por aí com jornais e revistas e pelo preço destes. É interpretado pela excelente Ashley Judd, que volta a ter um raro papel à medida do seu talento: o de uma mulher sob influência que aprenderá aos poucos a bastar-se a ela própria. Come Early Morning (entre nós, Amargo Amanhecer) é uma simpática fatia de "americana" onde não faltam jukeboxes, bares de honky tonk, igrejas de madeira onde a Bíblia é cantada na música do rock, a caução das veteranias de Diane Ladd e Stacey Keach, e uma boa dose de nostalgia. Não é grande filme, mas é um filme que me soube muito bem.

12.12.2008

O meu Slim Aarons


























Só hoje percebi que parte do que de imediato me atraiu no blogue do Pedro Duarte Bento tem a ver com as saudades que sinto da presença blogosférica mais idiossincrática do meu amigo Eduardo Pinto. De uma maneira ou de outra, por palavras ou mais frequentemente por imagens, ambos me fizeram (fazem) descobrir e sentir coisas.

Aussies do it better


























Cate Blanchett fotografada por Justin Smith.

12.11.2008

Wikipédico


























Os Lynyrd Skynyrd, que têm dois primeiros álbuns para os quais é apropriada a classificação vernacular de "reais malhetos", chamam-se assim em provocação a Leonard Skinner, o professor de Educação Física de alguns futuros elementos da banda que não tolerava alunos de cabelo comprido (ou dados à desbunda). Como se pode ver, há sempre mérito na disciplina. Sabiam desta? Eu não sabia.

Muda o disco, toca o mesmo





















[Adenda das 16:39] Ou quase.
[Adenda das 17:08] Muda o disco, toca outro cada vez mais diferente: é o factor Byrne a ganhar ascendente.

Hirto e firme


























Cem anos de vida, e várias décadas a fazer o que gosta.

12.10.2008

As listas (what else?)

Primeiro as minhas, depois as vossas.


10 discos que mais gostei de ouvir em 2008:





















American Music Club, The Golden Age;
Arve Henriksen, Cartography;
Black Mountain, In the Future;
Camané, Sempre de Mim;
Dennis Wilson, Pacific Ocean Blue;
Jun Miyake, Stolen From Strangers;
Marcin Wasilewski Trio, January;
Paolo Conte, Psiche;
Robert Forster, The Evangelist;
Thomas Feiner & Anywhen, The Opiates (revised).


10 filmes que mais gostei de ver (em sala) em 2008:


















Antes que o Diabo Saiba que Morreste, de Sidney Lumet;
Aquele Querido Mês de Agosto, de Miguel Gomes;
Corações, de Alain Resnais;
The Darjeeling Limited, de Wes Anderson;
Into the Wild, de Sean Penn;
No Country for Old Men, de Joel Coen;
Nós Controlamos a Noite, de James Gray;
O Segredo de um Cuscuz, de Abdellatif Kechiche;
Sweeney Todd, de Tim Burton;
WALL-E, de Andrew Stanton.


10 blogues que mais gostei de visitar em 2008:





















As Aranhas;
A Origem das Espécies;
E Deus Criou a Mulher;
Estado Civil;
Menina Limão;
Provas de Contacto;
Sound + Vision;
Tradução Simultânea;
Vidro Duplo;
Vontade Indómita.

Surf's up


12.09.2008

Prometida de outro

Europa profunda




















As geografias de Arve Henriksen e de David Sylvian ter-se-ão interceptado mutuamente por alturas da constituição do projecto Nine Horses, que faz alinhar também o irmão de Sylvian, Steve Jansen, e o mago da polirritmia electrónica, Burnt Friedman. Sylvian encontrou em Henriksen uma sensibilidade próxima de outro músico enorme, igualmente trompetista, igual experimentador dos resultados decorrentes da transformação de sons acústicos por via das electrónicas, que é Jon Hassell, que com Sylvian havia participado no arranque da discografia a solo deste. Henriksen colaborou recentemente na criação do ambiente sonoro, conduzida por David Sylvian, que após utilização numa instalação de arte contemporânea na ilha japonesa de Naoshima veio a conhecer edição discográfica. Arve Henriksen, por sua vez, foi constituindo assinalável discografia na Rune Grammophon, espécie de ECM das identidades musicais vanguardistas do norte da Europa, até que em 2008 é na própria ECM que edita Cartography, onde reúne aos mais regulares cúmplices o nome de David Sylvian (que lê textos seus que evocam simultaneamente uma vontade de evasão e um desejo de comunhão num qualquer espaço tão retirado do mundo que possibilite que a união se dê harmoniosamente aos níveis físico e espiritual).
























A materialidade dos sons e a sua evanescência na espiritualidade do conjunto que é a música, é o que se dá a escutar em Cartography, e se por um lado é um trabalho reconhecível na evolução da discografia de Arve Henriksen, as múltiplas contribuições aqui reunidas e o modo como as mesmas foram integradas em cada composição, reflectem a maior complexidade mas não menor fluidez do estado actual da (re)composição de Arve Henriksen: algo que poderíamos situar entre Arvo Pärt e o melhor Sigur Rós, o David Sylvian de Gone to Earth e de Approaching Silence, o Miles Davis "exótico" das músicas para filmes, e o impressionismo japonês de Toru Takemitsu soprado por uma flauta shakuachi (justamente o som que Henriksen procurou reproduzir na sua estreia para a Rune Grammophon, Sakuteiki).









O que as meditações faladas de David Sylvian vêm a acrescentar a Cartography, é de ordem semelhante ao efeito provocado pela narração de Max von Sydow no início e fim de um dos melhores (e dos não menos formalistas) filmes de Lars von Trier, Europa. A indução de um estado que mimetiza uma hipnose controlada que ajuda a transportar o conjunto das peças para uma zona ainda mais interior onde os ecos gerados pelos vários recursos electroacústicos reverberarão na caixa onde guardamos o que nos é precioso e íntimo.
O jeito é proceder à contagem mental decrescente e deixar que o disco nos conduza para onde tiver de ser, e por um trajecto de algumas sombras e de muitas iluminações.

12.05.2008

As notícias da "sua" morte foram exageradas
























O espírito musical de Hector Zazou (1948-2008) vive agora no corpo conhecido de Jun Miyake, e com ele regressam também Arto Lindsay (que não grava em nome próprio desde 2004) e o sempre bem-vindo Vinicius Cantuária. Mas há outros. Esta verdadeira operação criativa transglobal é denominada Stolen From Strangers. Pergunto: quando foi a última vez que escutaram um álbum que surpreendesse a cada instante sem o mínimo sobressalto ou pirueta estética? Respondem: «Whether Miyake is the new Gil Evans or merely the new Bacharach, he's made a fantastic album.» Concordo, por inteiro.

Sonho

Quis de tal maneira fixar o sonho que acabou sonhando que fixara o sonho que tinha sonhado.

12.04.2008

Vanina















O fascínio exercido pelo filme de Zurlini explica-se com as palavras que alguém usa para descrever Vanina Abati (Sonia Petrovna), sobre o peito da qual repousa Daniele Dominici, na imagem, na véspera da primeira noite de quietude. Ela é uma rapariga com "muito passado, pouco presente, e nenhum futuro." Assim é também La Prima Notte di Quiete: um filme assombrado pelo passado dos protagonistas (vícios e morte); que decorre na zona costeira de Rimini, deserta por não ser Verão; que filma o quotidiano promíscuo e auto-destrutivo de um conjunto de pessoas que se encontram numa espécie de beco de única saída. Este Zurlini faz a súmula da náusea existencialista de Antonioni (O Eclipse, O Deserto Vermelho), da pulsão decadentista de Visconti (Conversation Piece, O Inocente), e da fúria niilista de Bertolucci (O Último Tango em Paris, e as semelhanças do Brando desse filme com o Delon do Zurlini vão além do facto de ambos usarem um sobretudo idêntico como uma segunda pele).

12.03.2008

Uma outra história de violência


















Num dos extras da edição DVD de Eastern Promises/ Promessas Perigosas, de David Cronenberg, o actor Viggo Mortensen relata a experiência de preparação para interpretar um motorista da Máfia Russa em Londres, e explica como a história de vida dos seus elementos, tradicionalmente regidos por um código apertado (o dos vory v zakone), se encontra inscrita nas tatuagens que preenchem os corpos. Muitas feitas na prisão e que marcam episódios de roubo ou homicídio, outras que assinalam rituais de promoção na hierarquia do grupo. Mortensen diz ainda que se algum ladrão forjasse as suas tatuagens e fosse descoberto, que estas lhe seriam arrancadas do corpo com uma faca semelhante às que o filme de Cronenberg mostra e que servem para degolar rivais. Os episódios que dão conta da relevância que as tatuagens assumem no universo da Máfia Russa vieram a influenciar a reescrita do argumento, ou não fosse Cronenberg um entusiasta do que diz respeito à contaminação, mutilação e transformação do corpo, e do modo como exteriorizamos processos de metamorfose particular e íntima. Nota-se que gostei muito de rever Promessas Perigosas, e parte da experiência gratificante que agora tive tem também a ver com o facto de ter identificado uma costela bíblica na história da bebé que por duas vezes é salva de morrer antes de se tornar filha (adoptiva, logo, de imaculada concepção para a segunda mãe) da enfermeira Anna, que lhe dará o nome de Christine (com alguma boa vontade pode ler-se Cristo em Christine). Quanto à personagem de Viggo Mortensen, o implacável taciturno Nikolai Luzhin, de improvável par de Anna (Naomi Watts), coisa que Cronenberg só muito ligeiramente sugere, terminará só e todo poderoso como um deus que tivesse ascendido a essa categoria independentemente da sua real vontade. Um deus que poderá doravante manter a própria história coberta da cabeça aos pés.

12.02.2008

O esteta da paixão


























A caixa Valerio Zurlini (1926-1982), que a Costa do Castelo colocou há dias no mercado, é talvez a mais importante edição videográfica de 2008. Há algum tempo que desejava descobrir outros filmes do realizador italiano, depois de ter visto, no mesmo dia, na Cinemateca, La Prima Notte de Quietti (1972) e O Deserto dos Tártaros (1976), duas obras-primas absolutas e absolutamente distintas entre si. Parti então directo para os títulos que a caixa também traz e que me faltava ver: o que veio a suceder novamente num único dia.
A Rapariga da Mala (1961) ilustra de início até final uma frase que eu ouvira a um amigo, que por sua vez lhe tinha sido confiada pelo seu pai. A frase usava palavras brutais mas na prática dizia, "Quando vires uma mulher muito bela, lembra-te que há sempre um homem que está farto dela." A protagonista deste Zurlini chama-se Claudia Cardinale (Aida) e encontrava-se no apogeu da beleza. Mas é também um corpo abandonado, desde logo nas primeiras cenas. E é ainda uma mulher à deriva na sua história de sedutora incompetente (inconsequente) que participa de uma dupla natureza: é capaz de deslumbramentos de adolescente que sonha com uma vida de princesa (junto do duque de Edimburgo, seu herói das revistas de coração), e por outro lado manifesta um desencanto e uma amargura de quem se limita a sobreviver dia após dia e logo cede às atenções rasteiras dos homens que a cercam. É bem possível que nos apaixonemos e desapaixonemos várias vezes por esta "rapariga da mala". Tal ambivalência é algo que Zurlini gere brilhantemente. É o que acontece no final com o jovem Lorenzo, e aquilo que traduz o conteúdo do envelope que este deixa a Aida na estação de comboios que o cinema de Valerio Zurlini carrega com a fatalidade das despedidas. E nesses instantes finais Lorenzo torna-se um homem, nem mais nem menos cínico do que qualquer outro.
Dois anos antes da ragazza, Zurlini havia dirigido outro drama que dava igualmente conta da paixão entre um jovem adulto e uma mulher mais velha: uma viúva de trinta e poucos anos (que nos tempos actuais corresponderia a uma mulher na ternura dos quarenta). Verão Violento (1959) passa-se por alturas da II Grande Guerra e trata de um amor que tem por obstáculo, da parte dela, as convenções sociais e a carga opressiva da família; da parte dele, e nessa feliz formulação apresentada por Vasco Câmara no texto nobre a caixa Zurlini do último Ípsilon, a "deserção de consciência". A história do par e da sua paixão adulta (ao contrário do enamoramento de Lorenzo n'A Rapariga da Mala, vivido aos 16 anos) é filmada com enorme subtileza ao longo do ritual de afastamento e aproximação (condicionado pela resistência dela, a esplendorosa Eleonora Rossi Drago - na imagem acima junto de Jean-Louis Trintignant), até que os amantes caiam nos braços um do outro. Este Verão Violento tem para mim a força de um The End of the Affair (recordando aqui a excelente adaptação trazida por Neil Jordan, com Ralph Fiennes e Julianne Moore nos principais papéis). Amor e Renúncia, a combinação perfeita no cinema. Filmadas com o pudor de um esteta dos sentimentos, matéria que com Valerio Zurlini temos todos muitíssimo a aprender.

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