4.09.2009

O inferno somos nós
















Não haverá muitos filmes sobre os quais seja tão difícil estabelecer uma apreciação objectiva como para Irreversível (2002), de Gaspar Noé. Da primeira vez saí a meio por compaixão. A escopofilia em mim pediu um segundo visionamento. Liberto de pressões exógenas rejeitei o filme pela crueza gratuita, pela crueldade exibicionista. Mas há sempre uma terceira volta para os demónios que persistem, e os de Irreversível (imagem superior) voltaram a atacar esta semana. Ouve-se uma frase, de início da boca do personagem que transita da longa-metragem anterior de Noé (Seul Contre Tous), e que diz: “O tempo destrói tudo.” Frase impressa no final, em fundo negro como sentença. Só que não é o tempo que tudo destrói, mas as pessoas que o fazem por ele. É isso que o filme da Gaspar Noé ilustra de forma brutal e... irreversível. O tempo apenas se mostra impotente para reparar as consequências dos sórdidos actos humanos. E o facto de a estrutura de Irreversível alinhar as acções do fim para o início mostra categoricamente essa impossibilidade. Ao espectador resta a tarefa de apanhar os indícios do que veio depois e que ele viu antes. Traços de imaturidade, de laxismo, de auto-complacência que abrem caminho à imparável tragédia. O filme de Gaspar Noé enumera o princípio do fim nos pequenos cacos, na mesquinhez de cada um, que não deixam de implicar consequências. É um filme cheio de si que fala do nosso tempo. É tão narcísico quanto os seus personagens, que gritam e que agem do alto do seu culto de personalidade. Numa voragem de que o filme se apropriará para a arrastar fundo adentro pela espiral do pesadelo. Dependendo do estado de espírito em que nos encontremos, Irreversível tanto pode ser o inferno cuja existência recusamos, como um suplício que necessitamos de atravessar. O filme de Noé queima na medida daquilo que trazemos dentro.
Mas Irreversível não se esgota em si mesmo. Um ângulo não menos interessante leva-nos a observá-lo enquanto resposta à derradeira obra de Stanley Kubrick, Eyes Wide Shut (1999), que no conjunto o realizador Gaspar Noé celebra confessadamente, dentro e fora da tela. Se bem se recordam há um cartaz de 2001, Odisseia no Espaço, na casa onde vive o casal protagonista: Marcus (Vincent Cassel) e Alex (Monica Bellucci). A própria estratégia de marketing de Irreversível assentou a potenciação dos apelidos Cassel, Bellucci, Noé, tal como Kubrick havia feita com relação a Cruise e Kidman e ele próprio. E é igualmente o pesadelo que regressa, com contornos mais viscerais e primários do que em Eyes Wide Shut (imagem inferior), embora idêntica questão central nos acompanhe ao longo de ambos os filmes. A ameaça real (e irreversível) que paira sobre qualquer par, é do interior deste que surge. Aquilo que contribui para a implosão da relação alimenta-se dos fantasmas trazidos pelos elementos que a constituem. O outro passa a ser menos aquilo que é de verdade, e antes aquilo que resulta da nossa ilusão delirante e convencida exponenciada pela projecção que os outros dão de si mesmos. É o reinado da imagem no mundo material, da performance, da comparação, da padronização do indivíduo pela comunicação de massas que cria expectativas que são desde logo virtuais à partida. E quando cuidamos excessivamente de nós, descuramos aqueles que estão em redor. O Dr. Harford de Tom Cruise no filme de Kubrick não anda menos iludido com a sua intimidade do que o Marcus (Cassell) na obra de Noé. Nos seus modos diferentes embora aproximáveis, trata-se de dois filmes profundamente moralistas e conservadores que expõem as fragilidades do mundo contemporâneo marcado pela possibilidade de escolha ilimitada (de tudo comprar, de possuir tudo) e pela constante perseguição da gratificação do indivíduo pelo indivíduo.
De forma diferente, mais racional no caso de Kubrick, mais física no exemplo de Noé, estamos face a dois títulos cujo propósito último parece ser o castigo da pulsão lúbrica imatura que nos faz carregar um sofrimento vão e ilusório. São filmes que expõem o mundo dos prazeres artificiais, onde até experiências tão vazias de verdadeira ressonância humana como os sonhos, são insufladas de angústia pelo egocentrismo dos seus protagonistas, ganhando relevo desproporcionado e consequências trágicas. Mundo no qual a mulher não se reconhece conscientemente na função de troféu, onde noutras ocasiões se deixa aprisionar (ainda que em sonhos).

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