1.30.2009
Demasiada realidade
Michael Shannon é a melhor coisa do melhor que tem o filme Revolutionary Road, de Sam Mendes: a direcção de actores; sim, porque fora isso me pareceu de um pálido academismo. Para quem perdeu Michael Shannon em Bug, de William Friedkin (que Shannon trazia preparado do palco), o impacto será quase tão forte. Michael Shannon é agora o secundário que concentra muita da nossa atenção e dos nossos receios. O que dali sai é ameaçador, inesperado, surpreendente. Quando contracenou com ele em Bug, Ashley Judd referiu-se-lhe, por outras palavras, como sendo o tipo de actor que não se via desde que De Niro e Pacino renovaram o paradigma da imprevisibilidade.
Há o perigo de Shannon ganhar o Oscar no próximo dia 22 de Fevereiro. Eis um risco que vou gostar de ver confirmado, e de aplaudir depois.
1.29.2009
Faca de dez legumes
«Nunca pensei que foder fosse uma coisa tão boa. Se quisesse contar como foi a minha trepada com Guiomar, eu tinha que ser um escritor daqueles que escrevem livros grossos cheios de páginas. O que eu sei é que depois de fodermos não sei quantas vezes eu fiquei deitado na cama, ela com a cabeça em cima do meu peito, feliz como nunca.
Então me lembrei de perguntar se ela sabia lavar, passar e cozinhar. Não sei, meu amor, ela respondeu, trabalho e quando chego em casa janto sopa dessas de envelope que você põe numa xícara grande, joga água fervendo, mexe e pronto, é só comer. Você já tomou essa sopa? É baratinho, no meu supermercado tem de galinha, carne, dez legumes, ervilha com pedacinhos de torrada, brócolis e uma porção de outras, eu gosto de galinha.
Eu nunca tinha comido uma merda daquelas e duvido que o meu velho também tivesse. Guiomar não sabia lavar, passar nem cozinhar e eu devia dar um pé na bunda dela, mas não dei. Pensei, vou foder mais uma vez depois boto para escanteio.
E fodi mais uma, mais duas, mais três. Fodi o mês inteiro e mais outro mês e não botei ela para corner. Eu estava apaixonado. Perguntei se ela queria morar comigo. Ela queria. O morro onde Guiomar morava era longe do Leblon, onde ficava o supermercado em que ela trabalhava.
Guiomar mudou para minha casa. Aprendi a cozinhar e a lavar. Guiomar entra às nove horas no supermercado e eu, que sou porteiro de noite, fico em casa, lavo a roupa e ponho para secar num varal na laje, cozinho e deixo o jantar pronto.
Jantamos juntos antes de eu ir trabalhar. Quando volto, Guiomar ainda está dormindo e eu deito na cama e fodo ela ainda dormindo e ela acorda e diz que me ama e eu digo que a amo e fodemos novamente.»
[Ela e Outras Mulheres, Rubem Fonseca, página 47 inteirinha]
Prefira o original. Um escritor fodido de bom.
Então me lembrei de perguntar se ela sabia lavar, passar e cozinhar. Não sei, meu amor, ela respondeu, trabalho e quando chego em casa janto sopa dessas de envelope que você põe numa xícara grande, joga água fervendo, mexe e pronto, é só comer. Você já tomou essa sopa? É baratinho, no meu supermercado tem de galinha, carne, dez legumes, ervilha com pedacinhos de torrada, brócolis e uma porção de outras, eu gosto de galinha.
Eu nunca tinha comido uma merda daquelas e duvido que o meu velho também tivesse. Guiomar não sabia lavar, passar nem cozinhar e eu devia dar um pé na bunda dela, mas não dei. Pensei, vou foder mais uma vez depois boto para escanteio.
E fodi mais uma, mais duas, mais três. Fodi o mês inteiro e mais outro mês e não botei ela para corner. Eu estava apaixonado. Perguntei se ela queria morar comigo. Ela queria. O morro onde Guiomar morava era longe do Leblon, onde ficava o supermercado em que ela trabalhava.
Guiomar mudou para minha casa. Aprendi a cozinhar e a lavar. Guiomar entra às nove horas no supermercado e eu, que sou porteiro de noite, fico em casa, lavo a roupa e ponho para secar num varal na laje, cozinho e deixo o jantar pronto.
Jantamos juntos antes de eu ir trabalhar. Quando volto, Guiomar ainda está dormindo e eu deito na cama e fodo ela ainda dormindo e ela acorda e diz que me ama e eu digo que a amo e fodemos novamente.»
[Ela e Outras Mulheres, Rubem Fonseca, página 47 inteirinha]
Prefira o original. Um escritor fodido de bom.
Tempo suspenso
Estas imagens estão separadas por cerca de 40 anos. Na foto de cima, vê-se a actuação de Johnny Cash na prisão de Folsom que ficou registada naquele que é provavelmente o melhor disco ao vivo de sempre. Voltei a ele nos últimos dias e por razões que outra ligação não têm entre si excepto fazerem parte da minha vida. E de cada vez que regresso a Cash é com maior respeito e uma admiração ainda mais profunda. Basicamente, eu queria ser como ele: irradiar tamanha masculinidade, um igual carisma.
Na imagem de baixo, que tem por cenário uma vez mais Folsom, observamos as expressões de quatro presidiários que assistem à projecção de Walk the Line, filme de James Mangold que termina com a união de Cash e June Carter para não abdicar de um final feliz. O mais interessante é que estes homens já estavam detidos quando Cash lá fora quarenta anos antes. Não sei se é por isso que a fotografia, em plano fechado sobre os quatro, me parece uma imagem sem tempo. Que tanto podia ser da década de 60 como de hoje. Como se na prisão a vida ficasse como que suspensa, numa pausa necessariamente ilusória e que sempre me atraiu com a força das coisas que à distância nos fascinam, mas que é bem provável que não gostássemos de experimentar: o deserto, para dar outro exemplo.
1.28.2009
Pedro Adão Messina
Matrimónio
Comentei com um amigo, em jeito de blague, à saída de uma sessão de curtas na Cinemateca, que aquilo que o Som e a Fúria juntou ninguém devia ousar separar. Isto a propósito de mais um feliz programa duplo em que foram vistos os filmes de Miguel Fonseca, Alpha (2008), e de Sandro Aguilar, Arquivo (2007). E o resultado foi tão estimulante quanto a antestreia há cerca de um ou dois anos de Rapace, de João Nicolau, e de Cântico das Criaturas, de Miguel Gomes, títulos saídos também daquela produtora.
Alpha é uma absoluta surpresa e um filme curiosíssimo a vários níveis. A linha narrativa é minimal, reúne três seres - dois humanóides perfeitos embora mais sorumbáticos que os do Blade Runner de Ridley Scott e um examinador, este provavelmente humano. Os robôts de tão miméticos desenvolvem sentimentos: há uma subtil sugestão de história de amor; há o desejo de experimentar o mundo fora da casa onde ensaiam as suas obrigações. Mas o que é fascinante nesta curta de Miguel Fonseca passa por um fetichismo que importa iconografia e outras referências culturais do Japão (música, gastronomia, néons): país para onde se pretende que Alpha (João Nicolau) e Beta (Sara Carinhas) sejam depois enviados. O filme tira de tal modo partido do seu quase único décor, que parece ter sido escrito em função deste. As cores, as vozes (em português e japonês), os movimentos de câmara muito zen, as coreografias do desejo servil e pontuais detalhes que são lidos como emoções humanas que as duas máquinas passaram a ter, envolvem-nos numa espécie de abstracção ritualizada. Queremos mais.
Quanto a Sandro Aguilar, que no formato tem um percurso bastante consolidado, impõe-se especular se não será já o equivalente português, em natural menor escala, do multidisciplinar Matthew Barney (o da série Cremaster). A coerência do universo de Aguilar instalou-se numa radical Zona (maiúscula assumida) de rarefacção habitada pelas mesmas obsessões com lugares desabitados ou habitados por monstros, desperdícios, matérias mortas. Como o espectador persegue até no mais imperceptível fio narrativo um nexo de causalidade, a interpretação que pode ser dada deste Arquivo encaminha-nos para a vertigem (fobia e atracção) causada por uma ameaça ecológica e a consequente luta da(s) espécie(s) pela sobrevivência: a respeito os intermináveis estertores do peixe sobre a mesa é natural que suscitem a objecção de alguns, ainda que atenuada por sabermos que a cena contou com o acompanhamento de uma equipa de biólogos. Arquivo é um objecto forte que talvez beneficiasse de uma menor imposição do seu programa de experimentação. Até porque a nível estético Sandro Aguilar reincide num universo que não necessita de confirmação.
Alpha é uma absoluta surpresa e um filme curiosíssimo a vários níveis. A linha narrativa é minimal, reúne três seres - dois humanóides perfeitos embora mais sorumbáticos que os do Blade Runner de Ridley Scott e um examinador, este provavelmente humano. Os robôts de tão miméticos desenvolvem sentimentos: há uma subtil sugestão de história de amor; há o desejo de experimentar o mundo fora da casa onde ensaiam as suas obrigações. Mas o que é fascinante nesta curta de Miguel Fonseca passa por um fetichismo que importa iconografia e outras referências culturais do Japão (música, gastronomia, néons): país para onde se pretende que Alpha (João Nicolau) e Beta (Sara Carinhas) sejam depois enviados. O filme tira de tal modo partido do seu quase único décor, que parece ter sido escrito em função deste. As cores, as vozes (em português e japonês), os movimentos de câmara muito zen, as coreografias do desejo servil e pontuais detalhes que são lidos como emoções humanas que as duas máquinas passaram a ter, envolvem-nos numa espécie de abstracção ritualizada. Queremos mais.
Quanto a Sandro Aguilar, que no formato tem um percurso bastante consolidado, impõe-se especular se não será já o equivalente português, em natural menor escala, do multidisciplinar Matthew Barney (o da série Cremaster). A coerência do universo de Aguilar instalou-se numa radical Zona (maiúscula assumida) de rarefacção habitada pelas mesmas obsessões com lugares desabitados ou habitados por monstros, desperdícios, matérias mortas. Como o espectador persegue até no mais imperceptível fio narrativo um nexo de causalidade, a interpretação que pode ser dada deste Arquivo encaminha-nos para a vertigem (fobia e atracção) causada por uma ameaça ecológica e a consequente luta da(s) espécie(s) pela sobrevivência: a respeito os intermináveis estertores do peixe sobre a mesa é natural que suscitem a objecção de alguns, ainda que atenuada por sabermos que a cena contou com o acompanhamento de uma equipa de biólogos. Arquivo é um objecto forte que talvez beneficiasse de uma menor imposição do seu programa de experimentação. Até porque a nível estético Sandro Aguilar reincide num universo que não necessita de confirmação.
1.27.2009
1.26.2009
Conta-me fábulas
O Estranho Caso de Benjamin Button actualiza com tal fidelidade a «fórmula» Forrest Gump, que sou levado a pensar que o seu argumentista - o mesmo Eric Roth - terá pretendido escrever esse filme uma outra vez. É uma fábula que explora de modo terno e ligeiramente melancólico os seus vários paradoxos: começando por aquele que diz respeito à excepcionalidade de Benjamin Button, de resto um homem com as aspirações e os sentimentos de qualquer outro. Há uma espécie de lado Disney para adultos no filme de David Fincher, que não é menos prodigioso do ponto de vista técnico que o resto da sua obra. O Estranho Caso de Benjamin Button trata a existência humana como uma aventura, não deixando de assinalar a passagem do tempo num tom conciliatório: a vida é representada como um somatório de experiências, boas e más, e de oportunidades, sobretudo ganhas. E naquele tom de pragmatismo que relacionamos com a imagem que temos do americano comum conclui que a vida realiza-se na consequência que damos àquilo que melhor nos caracteriza: uns dançam, outros criam filhos, outros consertam relógios, e por aí fora. É óbvio que isto requer alguma disponibilidade para a emoção por parte do espectador, como aliás todas as fábulas o fazem. E pode-se avaliar o efeito que o filme tem (teve) ou não em nós pelo facto de sairmos da sala experimentando um certo conforto, uma indeterminada reconciliação (com o quê? talvez apenas com a necessidade de nos emocionarmos, isso basta). O Estranho Caso de Benjamin Button é um objecto sentimental que visa o maior denominador comum. Se estivermos na disposição de nos reconhecermos envolvidos pela sua condescendência, não daremos a aventura por um tempo desperdiçado.
1.22.2009
O calcanhar dos Aquiles
Os homens de Philip Roth são seres condenados pela avidez sexual (sexual rapacity é expressão bem mais forte), e mesmo confrontados com a falência irreversível poderão ainda ceder a devaneios eróticos. Coleman Silk em The Human Stain, livro de Roth que deu bom filme dirigido por Robert Benton, não é caso terminal (ele recorre ao Viagra; o vigor dos engates nas livrarias e dos KO's obtidos nos ringues esgotara-se há muito) mas o seu derradeiro amor resultará em tragédia.
Porque li recentemente Indignation, onde se pode especular se o fim do protagonista terá ou não origem num personagem feminino, a colega de Universidade Olivia Hutton com quem sai uma noite e que lhe proporcionará daquelas estupefacções que jamais se esquecem, dei por mim a pensar em Olivia ao ver no ecrã Faunia Farley (interpretada por Nicole Kidman), mulher igualmente de "virtude fácil" e também com sérios traumas psicológicos. Há aqui um padrão, e penso que esta espécie de vertigem do escritor o empurra para uma visão redutora da sexualidade. Mas isto não rouba nada ao fascínio que a obra de Roth nos suscita, até porque os preconceitos transitam de autor para leitor e moralizarmos seria hipócrita.
Encontramos Coleman Silk (Anthony Hopkins) numa das suas últimas aulas, falando de Aquiles e do episódio da Ilíada onde o rapto de uma mulher serve a disputa entre o herói e Agámemnon. Silk perderá a própria mulher na sequência da perturbação causada pelo processo de difamação que movem contra ele, permanecendo sozinho até se cruzar com a jovem Faunia que tem metade da sua idade e que traz atrelado um ex-marido que pretende reconquistá-la. A partir daqui a história do filme é a história da batalha de Silk, que será breve, e onde o seu desejo só em parte será desforrado (não é sempre assim?).
Penso que podemos ler os livros de Philip Roth como um acerto de contas face à avidez sexual que se impõe enquanto sentido principal da vida, e consequentemente em relação à beleza feminina que a instiga. É como um fogo interior que nunca se apaga, daí a razão de os seus livros queimarem de dor (tornada revolta mais ou menos mansa com a velhice e as suas evidências), e arderem esplendorosamente.
1.19.2009
Quando começar pelo fim é o melhor princípio
Josh Homme, enorme mestre de cerimónias, reunido com PJ Harvey nos volumes 9 e 10 das The Desert Sessions. Era bom que mais discos nascessem assim: as vísceras à mostra e a aspereza dos primeiros berros.
Orfeu negro
Déjà Vu de Tony Scott comete o arrojo de fazer do passado presente, e do presente uma possibilidade de corrigir o passado. A explicação científica é menos importante (relativamente à virtualidade que o filme equaciona) e envolve tecnologia que permite comprimir as faixas temporais por intermédio do registo do tempo efectuado a partir de uma rede de satélites. O que realmente importa é a narrativa, e a tensão que Scott gere de modo prodigioso. Ele tem de mexer no fundo com três histórias (plots) que naturalmente se interceptam: o golpe terrorista, a trama científica e a história de amor insinuada no momento em que o polícia Doug Carlin (Denzel Washington, só! o mais carismático leading man e um tremendo actor) olha as imagens de satélite que reportam a dias atrás quando Claire Kuchever - a vítima do caso que ele está a investigar - estava ainda viva. Mas ela está viva! E é a possibilidade de interferir no destino de Claire que Doug arriscará no final. Qual Orfeu partindo ao resgate da sua Eurídice, Doug Carlin atravessará para um tempo já "morto" (o passado) para trazer a mulher que ama para o mundo dos vivos (o presente). Déjà Vu põe em filme a tensão criada entre o curso de eventos que tem forte tendência para se realizar, e a curta margem de intervenção para a inversão desse mesmo fluxo. E é incrível como a obsessão com o detalhe, com o fragmento, por parte de Tony Scott (a desmultiplicação de planos é uma constante nos seus filmes: profundamente estilizados e ocasionalmente redundantes), permite verificar como a lógica causal se reorganiza para dar coerência ao todo. Como se o regresso de Carlin ao passado fizesse de alguma forma parte do seu actual presente, antes de ele ter agido sobre aquele. Confusos? É uma belíssima e radical história de amor, e isso é que fica.
1.16.2009
1.15.2009
Ressaca
Penso que os episódios especiais que encerram as derradeiras épocas das séries The Office e Extras resultam numa espécie de ressaca por antecipação da exuberância dissimulada que esgotam para sempre. A estratégia de Ricky Gervais e Stephen Merchant, se é que se pode falar de estratégia quando o processo de criação mais parece assemelhar-se a um movimento de progressão no caos provocado e diria até inevitável, frusta as expectativas dos que procuram a closure (resolução, fechamento) quando os dois autores preferem a suspensão daquele fluxo de pinguinhas. Os personagens de The Office e Extras estão condenados a que os fixemos numa espécie de eterno contínuo: uma tónica existencialista (que roça o absurdo) não dá lugar à transformação ou a qualquer mudança significativa que os liberte na ficção permitindo que a relação com o espectador se arrume em definitivo. E eles andarão por aí, para que os recordemos por aquilo que são: imperfeitos e condenados. O especial de Natal da série Extras, que resulta desta co-produção pioneira entre a BBC e a HBO, é pela maior densidade que vem com a sua longa duração (cerca de 80 minutos), aquilo que propriamente é e o seu contrário: gratuito e genial, satírico e terno, parece evocar memórias de Chaplin e de Fellini, só aparentemente inconciliáveis. Ou não fossem as criaturas de Merchant e Gervais igualmente cínicas e ingénuas, vivendo de anseio em desencanto, sonhando com a fama e despertando para a estagnação. Cercadas pelo banal.
Parr par...
Ice-cream balnéaire
Martin Parr
Eighties, Angleterre
Martin Parr
Ventre blanc à l'air
Martin Parr
Nager quelque part
New Brighton, caissière
Martin Parr
Caddie, pack de bières
Martin Parr
Plastique dans la mer
Martin Parr
Jeter quelque part
Casino désert
Martin Parr
Vert fluo, dessert
Martin Parr
Cheveux bleus, grand-mère
Martin Parr
Vieillir quelque part
Gasoil ou super
Martin Parr
Enfant à l'arrière
Martin Parr
Mal au cœur sur terre
Martin Parr
Dormir quelque part.
["Martin Parr", Vincent Delerm, Quinze Chansons]
1.14.2009
Vincent nous appartient
Apesar de invisíveis das prateleiras nas lojas portuguesas de discos, os álbuns de Vincent Delerm apresentam-se cada vez mais preciosos. Qual é o segredo afinal da sua escrita de canções onde ocupa um lugar que vem acentuando o seu carácter solitário, já que praticamente ninguém cujo talento se lhe compare o acompanha nesta cadência de um novo CD de originais de dois em dois anos? Na minha opinião é o facto de Delerm conseguir fazer situar a tonalidade das suas canções numa zona cuja luminosidade se assemelha aos breves instantes em que o sol está prestes a nascer ou a desaparecer na linha do horizonte. As músicas de Vincent Delerm possuem essa leveza que escapa à definição no exacto momento em que as pretendemos investir de um pathos qualquer. E não se pense que o músico não se leva a sério. Leva-se, sim. Mas nunca durante um tempo desnecessário. O novo disco chama-se simplesmente Quinze Chansons e acabei de ouvi-lo uma primeira vez. Dura 36 minutos.
P.S. Meu caro Neil Hannon, não quer isto dizer que não tenhamos saudades tuas.
O sonho americano
O sonho americano representa a capacidade de nos sentirmos jovens e em face do ilimitado campo das possibilidades. Alguns discos têm o condão de fazer recuperar esse estado, senão ilusório, pelo menos efémero. E, no caso (e para o caso de um apelido onde se reúnem as palavras "primavera" e "adolescência"), de ir criando mitos. Foi através da sua discografia clássica que o Boss descreveu todo um universo totalmente americano que identificamos como a ficção onde em parte nos formámos (tal como nas salas de cinema). As suas canções carregam uma ferocidade individualista e um desejo de afirmação que as torna sempre actuais: elas não têm tempo no sentido em que o seu tempo é consequentemente mitológico. Ao recuperarmos estes discos recuperamos parte daquilo que fomos e que nunca se extinguiu, apenas ficou soterrado pelo cansaço das responsabilidades acumuladas. Estes discos transmitem uma energia vital, mesmo que ilusória e ainda que efémera. Ou não seria sonho, apesar de americano. No concreto das sentimentalidades este é um portentoso disco que baralha o topo dos meus afectos springsteenianos, quando me deixo sonhar.
1.13.2009
Companhia da música
É para meu grande prazer que algo que comigo estabelece total harmonia não deixa de se renovar lá por casa. Nestes dias frios em que o trabalho me tem enclausurado até nos fins-de-semana, a rara fonte de calor além de um modesto aquecedor a óleo vem da música que deixo em fundo até fazer corpo com tudo o resto que me rodeia. Esta capacidade quase camaleónica dos sons está ao alcance de poucos, e foram poucas as presenças e prolongadas as reincidências. Sobre o CD de Brian Eno de que possuo apenas uma cópia (das poucas que me permito usufruir) dado que se trata de edição limitada a 500 exemplares, nada tão apropriado como as palavras do autor para definir o extraordinário documento (outro exemplo do pioneirismo de Eno que nos deixa estupefactos): «I was thinking of the sound less as music and more as sculpture, space, landscape, and of the experience as a process of immersion rather than just of listening.»
O disco de Koen Holtkamp, Field Rituals, veio ao meu encontro por intermédio de um cruzamento de referências. Nesta altura do ano tão propícia a balanços e listas, fui descobri-lo numa via paralela que não recordo mais. Sendo da Type (dos Deaf Center, de Sylvain Chauveau, de Xela) a garantia de qualidade era forte. Mas este título de Koen Holtkamp em muito supera as expectativas de um devoto da drone music como sou. 2008 não foi generoso em descobertas nesta área, antes serviu para a reconfirmação de nomes já integrados. Field Rituals é um CD excelente que reúne linguagens várias que vão do drone à recolha de ambientes sonoros (naturais), passando pelo registo de instrumentos como piano e guitarra usados com técnica e sensibilidade, tudo organizado num alinhamento que se aproxima do carácter abstracto da música ambiental e do neo-classicismo. Holtkamp é protagonista quase absoluto, um músico completo na linha de um Max Richter cruzado com um Marsen Jules. Se houver justiça e ouvidos alerta, iremos ter mais notícias dele.
Para encerrar deixo novo território familiar, um disco de Clive Wright com Harold Budd que recupera colaborações entre os dois músicos ocorridas em anos recentes. Os temas não são novos, mas serão novidade para o vasto auditório onde me incluo. O que Harold Budd e Clive Wright levam à prática passa bastante pela recuperação dos resultados gerados pelo encontro de Brian Eno com Robert Fripp nos incontornáveis No Pussyfooting e Evening Star, mas agora emoldurados com acrescidas liberdades poéticas. O esqueleto é quase todo ele comum, só que Budd e Wright tratam de perfumá-lo com outro aparato. Eu gosto muito, embora reconheça que há um lado bonitinho que pode afastar os «ambientalistas» de barba rija. E gosto exactamente por se tratar de música aromática que preenche lentamente os espaços que cerca e que revela um grau apurado de sofisticação e de recriação a partir de estruturas consolidadas. Se conhecermos o que veio antes deste A Song for Lost Blossoms é natural que possamos recebê-lo sem exaltação mas com (algum) entusiasmo.
1.09.2009
My fellow eastwoodians
Desta vez o Mestre equivocou-se parcialmente com relação à real qualidade do material em mãos. O arranque de Changeling é de uma elegância extraordinária. Largas pinceladas que nos transportam para a época, e que traduzem rapidamente a profunda ligação entre uma mãe (a perfeita Angelina Jolie) e o seu filho. A música composta por Clint Eastwood é magnífica, arriscaria dizer que é o melhor do filme. Depois seguem-se as peripécias de uma história que testa a nossa credulidade, apesar de se tratar de uma história real. Que isto nunca saia de cogitação quer apenas dizer que o filme abandona a imponderabilidade do desenho largo e mais abstracto para se fixar nos pormenores figurativos. E aí Eastwood não consegue contornar o esquematismo do argumento e várias personagens surgem caracterizadas a traço grosso. Mas Changeling é ainda assim um filme muito digno, onde a mestria por vezes transparece.
Please stop
«Please stop. It doesn't take much to make me go off the rails. You think I'm a combative bundle of nerves. You think Richard Kliman is my lover? You think that still? That I would have nothing to do with him sexually should be abundantly clear to you by now. You've imagined a woman who isn't me. Can't you realize what a reliefe it was when I met Billy and someone wasn't screaming all the time when I didn't accede to his wishes?»
[Exit Ghost, pág. 277]
Quase, quase a chegar ao fim. O fantasma nunca sai de cena.
1.08.2009
1.07.2009
Bright light II
Uma Gaza portuguesa
Quando eu e o meu irmão mais novo éramos crianças houve alturas em que ele me provocava a pontos de me atirar a ele. O pretexto das brigas não recordo mais. Tudo aconteceu há demasiado tempo atrás. Mas lembro que o deitava ao chão, punha o braço direito à volta do pescoço dele, e com o meu maior peso o imobilizava. Perguntava em seguida se ele se rendia, e a resposta era invariavelmente “Não!” E então eu apertava-lhe mais o pescoço, repetia a pergunta, e ele dava a mesma resposta. E eu apertava e apertava o pescoço dele, e o meu irmão ia ficando cada vez mais vermelho quase roxo. E mais suado pela resistência que opunha à minha força. Nunca se rendendo. Jamais se rendeu. Era “Não!”, “Não!” e “Não!” E o final sempre igual. Eu acabava por ter de o soltar.
1.06.2009
Roth e a compaixão dialética
«But isn't one's pain quotient shocking enough without fictional amplification, without giving things an intensity that is ephemeral in life and sometimes even unseen? Not for some. For some very, very few that amplification, evolving uncertainly out of nothing, constitutes their only assurance, and the unlived, the surmise, fully drawn in print and paper, is the life whose meaning comes to matter most.» [Exit Ghost, pág. 147 da ed. Jonathan Cape, 2007]
Terminei de ler Indignation e passei logo de seguida para Exit Ghost. Indignation é um livro impressionante. Como se se tratasse de uma prova de obstáculos à qual o protagonista, Marcus Messner, acaba por sucumbir. É fácil de atingir para quem já tenha lido qualquer livro de Philip Roth, como a escrita do americano pode ser viril e enxuta, uma escrita que encurrala e que desfere golpes de desassombro e lucidez. Os livros de Roth têm uma firmeza (quase) autoritária. E bem sabemos como isso pode ser sedutor, sobretudo para os leitores do sexo masculino, sempre na ânsia de receber lições de vida de um homem mais experiente merecedor da sua admiração.
Mas Exit Ghost é um livro igualmente notável (e digo isto tendo lido dois terços das suas cerca de 300 páginas, com a convicção proporcionada por um autor que se reconhece), e creio mesmo que surpreendente. É uma obra onde Roth manifesta compaixão, embora uma compaixão dialética. A sua compaixão pelo protagonista (e imaginamos que em boa parte alter-ego), Nathan Zuckerman; e a compaixão de Zuckerman para com os outros, em particular para com Amy Bellete, uma mulher que Zuckerman desejara cinquenta anos antes e que vivera intensa paixão de quatro-cinco anos com o seu mestre de letras, E. I. Lonoff (autor fictício que é modelo de ascetismo e integridade para Zuckerman, que optou sempre por se colocar fora das mundaneidades da vida literária). Quando refiro compaixão dialética quero dizer que os sentimentos de identificação de Roth para com Nathan Zuckerman, e deste para com outros, estão tingidos daquela implacável consciência da decrepitude física e intelectual que acompanha a velhice. O sentido de que a vida se extingue de igual forma para todos nós, e que se resumirá grosso modo a um somatório de oportunidades perdidas. A vida que traz à nascença incalculável potencial, que se revela uma incontornável condenação. E para a qual as artes (daí a citação) servirão de algum modo de consolo. De reorganização da vida, de reinterpretação da vida, mais intensa e "generosa" que essa mesma vida. A arte como a vida maior que a vida. A vida amplificada à extensão do nosso ego. A escrita de Philip Roth.
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