Comentei com um amigo, em jeito de blague, à saída de uma sessão de curtas na Cinemateca, que aquilo que o Som e a Fúria juntou ninguém devia ousar separar. Isto a propósito de mais um feliz programa duplo em que foram vistos os filmes de Miguel Fonseca, Alpha (2008), e de Sandro Aguilar, Arquivo (2007). E o resultado foi tão estimulante quanto a antestreia há cerca de um ou dois anos de Rapace, de João Nicolau, e de Cântico das Criaturas, de Miguel Gomes, títulos saídos também daquela produtora.
Alpha é uma absoluta surpresa e um filme curiosíssimo a vários níveis. A linha narrativa é minimal, reúne três seres - dois humanóides perfeitos embora mais sorumbáticos que os do Blade Runner de Ridley Scott e um examinador, este provavelmente humano. Os robôts de tão miméticos desenvolvem sentimentos: há uma subtil sugestão de história de amor; há o desejo de experimentar o mundo fora da casa onde ensaiam as suas obrigações. Mas o que é fascinante nesta curta de Miguel Fonseca passa por um fetichismo que importa iconografia e outras referências culturais do Japão (música, gastronomia, néons): país para onde se pretende que Alpha (João Nicolau) e Beta (Sara Carinhas) sejam depois enviados. O filme tira de tal modo partido do seu quase único décor, que parece ter sido escrito em função deste. As cores, as vozes (em português e japonês), os movimentos de câmara muito zen, as coreografias do desejo servil e pontuais detalhes que são lidos como emoções humanas que as duas máquinas passaram a ter, envolvem-nos numa espécie de abstracção ritualizada. Queremos mais.
Quanto a Sandro Aguilar, que no formato tem um percurso bastante consolidado, impõe-se especular se não será já o equivalente português, em natural menor escala, do multidisciplinar Matthew Barney (o da série Cremaster). A coerência do universo de Aguilar instalou-se numa radical Zona (maiúscula assumida) de rarefacção habitada pelas mesmas obsessões com lugares desabitados ou habitados por monstros, desperdícios, matérias mortas. Como o espectador persegue até no mais imperceptível fio narrativo um nexo de causalidade, a interpretação que pode ser dada deste Arquivo encaminha-nos para a vertigem (fobia e atracção) causada por uma ameaça ecológica e a consequente luta da(s) espécie(s) pela sobrevivência: a respeito os intermináveis estertores do peixe sobre a mesa é natural que suscitem a objecção de alguns, ainda que atenuada por sabermos que a cena contou com o acompanhamento de uma equipa de biólogos. Arquivo é um objecto forte que talvez beneficiasse de uma menor imposição do seu programa de experimentação. Até porque a nível estético Sandro Aguilar reincide num universo que não necessita de confirmação.
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