10.29.2007
doclisboa - os outros dias
Nunca fui sensível - embora goste bastante de On the Waterfront - à masculinidade irradiada por Marlon Brando. Tão pouco ao seu trabalho de actor que sempre achei a modos que cabotino - fisicalidade (es)forçada - murros na mesa, t-shirts rasgadas, ganidos de bebé adulto - longe, muito longe, dos meus eleitos: Cooper ou Mitchum, por exemplo. Mesmo assim resolvi ir ver Brando, de Leslie Grief e Mimi Freedman, que encerrou a maratona marcada para ontem no doclisboa. Aprende-se sempre alguma coisa com estes objectos. São de um academismo sem mácula. Trazem imagens e outros documentos muito pouco vistos ou inéditos até, só que levar com quase 3 horas de hagiografia plena de redundâncias, com a "ilustre carneirada" (Scorsese, Turturo, Norton, Penn, Malden, Pacino, Depp) a tecer comentários embascados sobre um actor que marca a sua época, e várias décadas também (há, segundo eles, o antes e o depois de Brando), torna-se programa por demais enjoativo. A estes documentários (muito bem documentados) em que os americanos são especialistas, falta o reverso da questão: vozes dissidentes, a atribuição de espaço ao lado sombrio do sujeito em foco e a total isenção que se pede a um trabalho acima de suspeita. Por exemplo: a muito propalada ausência de Brando na cerimónia dos Oscars de 1972, onde viria a receber a estatueta principal pelo Padrinho, deu origem ao número de circo (que o documentário não refere enquanto tal...) que foi a aparição da actriz que a pedido do consagrado se fez passar por uma Nativa Americana que reclamava da descriminação de que os índios eram alvo quando retratados pelo cinema daquele país. Parece que John Wayne, também presente, teve vontade de arrancar a impostora do centro das atenções, mas tal não se veio a verificar. Na próxima edição do doclisboa, se fazem o favor, quero um documentário destes mas sobre o homem Wayne: chega de bebés chorões.
No mesmo dia, ao final da manhã e início da tarde, projectou-se Andy Warhol: a Documentary Film, de Ric Burns, não somente 3 mas 4 horas sobre a figura que alguns consideram o maior artista da segunda metade do século XX. É um trabalho de competência equivalente a Brando, e com as limitações daquele. Demasiado exaustivo, furtando-se às imagens mais provocadoras produzidas pelo artista, é o tipo de documento que serve à instrução de toda a família na hora do jantar (ninguém regurgitará o leite com aquilo que se ouve ou vê no ecrã...). Serve assim de curso acelerado sobre a cultura popular na era do culto da iconografia e das possibilidades de infinita reprodução, se passarmos por cima do branqueamento que este tipo de abordagem promove em relação aos eleitos. A intimidade de Warhol fica-se pela nota de rodapé, o período com os Velvet Underground vai-se "num fósforo", os seus trabalhos com imagens em movimento são analisados pela rama: outra limitação deste tipo de objecto é colocar, de inicio até ao fim, as mesmas pessoas a papagearem as mesmas coisas sobre aquele com quem tiveram o privilégio de privar em tempos idos. A certa altura repetem-se as imagens e os argumentos sucedem-se como clichés em marcha aprumada. Ainda assim, e tendo em conta o interesse suscitado pelo tema, foi um tempo mais proveitoso do que o que estaria para vir - e que veio a incluir ainda Bomb It, de Jon Reiss, sobre a malta do graffiti que "picha" por esse mundo fora. As razões, as vidas, os resultados, a liberdade, a contestação, cedo atingem o limite da diversidade. A coisa tem ritmo, cor e pouco mais. Foi muito aplaudida a sessão, mas não por mim.
Também saí mudo e quedo da sessão da passada quinta-feira, onde foi exibido Zidane, un Portrait du 21ème siècle, de Douglas Gordon e Philippe Parreno. Gostar de futebol, ajuda. Gostar de Arte, nem tanto. Trata-se, como diria um ex-professor meu, de um objecto extremo. Experiência que retém a curiosidade do espectador ao longo do primeiro terço da sua duração e que a partir daí limita-se a eventuais variações sobre os milimétricos estados emocionais e a movimentação em campo do astro francês. Zidane em plano aproximado como se estivesse a jogar sozinho. Para observar insistentemente uma pessoa condicionada, acho demasiado. Por mim, teria expulsado Zidane mais cedo para encurtar o filme. Outros visionamentos: Despuès de la Revolución, de Vincent Dieutre: diário de Buenos Aires com muita imagem sobreposta, algum sexo "transgressivo" e pontuais planos fixos das ruas da capital argentina. Tudo muito aborrecido. Esqueci-o imediatamente. Alimentei maiores expectativas em relação a Schoolscapes, do australiano David MacDougall. Primeiro porque se passava na Índia. Depois porque partia dos ensinamentos de Krishnamurti, aplicados a uma escola por ele fundada. No entanto, uma vez recusada a mínima contextualização, não foram dadas muitas hipóteses ao espectador para se relacionar com os fragmentos, montados de forma elíptica, o resultado acabando por gerar indiferença: certamente mais sentida por uns que por outros. Quanto a mim, acabei no lote dos primeiros.
Para o fim deixei os melhores filmes que vi na edição deste ano do doclisboa: Le Papier ne Peut Pas Envelopper la Braise, de Rithy Pahn e Morceaux de Conversations avec Jean-Luc Godard, de Alain Fleischer. Ambos incluídos na secção designada por Sessões Especiais, o filme do cambodjano é marcado por enormes tristeza e resignação que são as das jovens mulheres que se prostituem nas ruas de Phnom Penh, que pouco a pouco perdem a crença de que haja alternativa àquela existência a que circunstâncias aproximáveis vieram a condená-las. O que chega a ser comovente no filme de Pahn é a capacidade deste para arrancar alguma poesia a um cenário desolador. Há frequentemente planos magníficos - planos de cinema - e há a registar também a capacidade do realizador para se aproximar das mulheres que se confessam para a câmara. Igualmente desarmante é a constatação, através do filme de Fleischer, do estatuto de dinossauro que é o que Jean-Luc Godard ocupa no panorama audiovisual actual globalizado. O que as últimas imagens deste filme particular revelam com proporcionais pudor e intensidade , é um homem cada vez mais só cujo discurso já não comunica com as gerações seguintes e que parece excluído da presente lógica de produção do cinema: nem Godard percebe patavina daquilo que motiva ou constitui o trabalho dos jovens criadores patrocinados - tal como ele - pelo Centro Pompidou, como por outro lado vê dificultada a forma de adequar o seu trabalho ao espaço concentracionário das salas de exposição. Godard cada vez mais isolado, encerrado no museu de imagens que tem em casa, privado e no limite intransmissível. Objecto tocante e amargo como a constatação de um tempo perdido para sempre.
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