4.04.2012
Grande cinema “aos quadradinhos”
Onde começa e termina Tabu, isto é, em termos cronológicos que tempo é o deste filme, medido em dias, no presente, e em meses, digamos que no passado? Tabu está em rigor montado cronologicamente, com um prólogo, que põe a claro as intenções do filme, e uma segunda metade que é do domínio do tempo infinito: porque não podemos dar medida às memórias, que sempre se acrescentam e ramificam até ao nunca mais acabar.
O filme de Miguel Gomes começa com as encantatórias Variações sobre o tema Insensatez, de Joana Sá, ao piano, e uma história (primeira de muitas), narrada pela voz do próprio realizador, que fala de um amor maior que a morte. Nunca foi outro o propósito mais fundo do cinema: o registo de imagens que sobrevivam às pessoas que nelas se vêem. Principalmente para outros que se revêem nelas. Depois avançamos para Aurora (a idosa, interpretada por Laura Soveral, antes da jovem, vivida por Ana Moreira, cada qual magnífica à sua maneira), a amiga Pilar e a criada Santa, três figuras solidárias e solitárias, de temperamento, que habitam a Lisboa actual, filmada num preto e branco carregado de melancolia, com recurso a uma planificação tão mas tão depurada que retirando-se-lhe os diálogos pareceria cinema mudo “verdadeiro”. Ora isto é o que vem a ser proposto de forma não purista na segunda parte do filme. Temos os sons ambiente genéricos e os particulares (naturais) de África, a narração da personagem que viveu um amor trágico desenrolado algures no sopé do monte Tabu, sons guturais autóctones e nada de diálogos falados ou intertítulos. Algumas imagens deste período passado e complementar têm relação directa com o que é narrado. Outras já parecem apontar um registo documental, ainda que farsante, que inscreve Tabu num período e mundo indefinidos, num tempo mitológico ou quase mitológico.
Para melhor compreender de que forma a aventura humana que vem depois, em África, se liga com o sofisticado expressionismo realista que estava antes, o momento chave parece-me encontrar-se quando Santa lê as aventuras de Robinson Crusoe, de Daniel Defoe. As palavras da criada negra de Aurora em Lisboa, sugerem imagens que o filme nega naquele instante mas a que mais tarde se entrega com vasto esplendor. Miguel Gomes, e isto num gesto de grande modernidade de um objecto de aparências antigas, filmado para se parecer com o antigo, liga cinema, literatura (o prazer do texto em Tabu é todo um programa de entre a totalidade dos materiais de que é composto) e aventuras “aos quadradinhos” (vulgo banda-desenhada), e de maneira imaginativa e profunda. O próprio ritmo de Tabu propicia a fruição do modo como cada imagem se inscreve no nosso olhar, nos nossos corações, ao mesmo tempo que se liberta e atravessa as várias linguagens.
Esteticamente notável (a fotografia de Rui Poças é extasiante) e de invulgar profundidade humana (em minha opinião mais sensível no tempo presente do filme), Tabu é o mais feminino dos filmes. Tudo nele é fecundo. Toda a ficção tem no centro uma mulher ou para ela se encaminha. A mesma mulher (Aurora), e as outras mulheres. Se na primeira parte (Paraíso Perdido) é da interioridade em desagregação de Aurora e sobretudo da bondade obstinada da vizinha e amiga Pilar (espantosa Teresa Madruga) que as imagens tratam, na metade posterior, ou anterior (Paraíso), é a imaginação que dita as leis de Tabu e o fim da aventura não é dado adquirido, pois que uma história sempre se liga com outra história e assim e sempre sucessivamente. Grande cinema que usa o formato quadrado de outra era (preto e branco, 1:1:37, diz a folha da Cinemateca), mas que dificilmente poderia ser de um tempo que não hoje. Os recursos de Miguel Gomes e da sua equipa são tudo o que veio antes e exactamente antes de Tabu ter arrancado. Há também a aventura específica de se arriscar um filme como este, para onde tanta coisa confluiu e de uma tremenda originalidade.
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