4.11.2012
Fábulas fabulosas
Foto: Ricardo Chaves
A AVENTURA
Parco de Alcântara nunca teve uma aventura amorosa. O que era natural. Nasceu baixo e nasceu feio. Cresceu feio e baixo. À proporção que os anos passavam tornava-se mais baixo e mais feio. O complexo dominava-o, a voz fugia-lhe. Tentou um ou outro caso sentimental, sempre, naturalmente, escolhendo também mulheres baixas e feias, mas nada conseguia. Era demasiado baixo e e feio. Com o tempo ficou, além de feio, calvo. Além de calvo, míope, teve que usar óculos, grossos, feios. E sobreveio-lhe uma anemia que lhe amarelava a pele, tornando-o, se possível, ainda mais feio.
Eis porém que, uma noite, já horas tardas, andava ele lentamente por um dos bairros residenciais grã-finos da cidade, quando, de uma janela num segundo andar, uma mulher, que lhe pareceu jovem e linda, chamou-o. Parco de Alcântara duvidou que fosse com ele. Olhou para trás, vendo se havia alguém na rua, embora soubesse antecipadamente que não havia ninguém, pois a essa altura seu complexo já era tão grande que ele só andava em ruas em que não havia ninguém. Fixou a vista, fez o gesto de quem pergunta: «Eu?» A mulher, esvoaçadamente no seu penhoar transparente, respondeu sussurrando, da janela: «O senhor sim, vem aqui, por favor.» Parco, o sangue subindo-lhe às faces, sentiu uma tremedeira, mas não hesitou. Subiu pelas escadas do edifício, sem sequer esperar pelo elevador. Ia pensando em notícias de jornais que falam de casos estranhos, moças grã-finas que... senhoras ricas que... essa gente rica é tão estranha no seu comportamento... tão cansada de tudo que... quando chegou ao segundo andar estava quase morto. De emoção e da pressa com que subira a escada.
À porta do apartamento a mulher já o esperava e era realmente linda. Não devia ter mais de vinte e dois anos. Fez um sinal para ele, pedindo silêncio, disse baixinho: «O senhor é um anjo». Pegou-lhe na mão, conduzindo-o através de alguns aposentos mobilados com o mais fino gosto, levando-o directamente ao quarto de dormir. Deitada na cama estava uma menina de uns dois ou três anos, com os olhos vermelhos de chorar. Encolheu-se de terror ao ver Parco de Alcântara e ainda mais quando a linda senhora disse: «Está vendo? Mamãe não lhe disse?! Se você não parar de chorar imediatamente, o Papão vai comê-la».
Moral da história: Quem ama o feio tem objectivo sinistro.
Millôr Fernandes, Pif-Paf (O Independente), antologia organizada por João Pereira Coutinho.
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