10.19.2009
Amor de mãe
Recordo perfeitamente a sexta-feira da estreia de Magnolia, de Paul Thomas Anderson, e a sessão da meia-noite no Monumental em que vi o filme estando também na sala o realizador português João Pedro Rodrigues. Não comentei o filme com o João Pedro à saída. Cumprimentámo-nos e despedimo-nos e só. Quando soube que o seu novo projecto se chamava Morrer como um Homem, título belíssimo, enviei-lhe uma SMS manifestando interesse em nele participar. Respondeu com simpatia e a coisa ficou por aí. Nunca tive vontade de rever Magnolia, embora me tenha à altura impressionado e muito. Foi como se o passar do tempo sobre a experiência tivesse sedimentado uma impressão de que se tratava de um exercício de manipulação exercida por um realizador demasiado consciente do seu virtuosismo. Tive receio de me desiludir e resolvi dar crédito ao faro que em outras ocasiões se revelou certeiro.
A impressão de virtuosismo auto-indulgente voltou a manifestar-se quando assisti a Morrer como um Homem, filme que me suscita uma mistura de sentimentos. Aquilo que eu já sentira com Odete – que João Pedro Rodrigues parecia em alguns momentos querer cumprir com as convenções do cinema gay – é vertido com domínio acrescido neste novo objecto, que revela uma competência cinematográfica (para lá da surpreendente opção pelo formato 1.33:1 e do impecável trabalho de imagem de Rui Poças) que na minha opinião é contraproducente face ao valor humano da história contada. O brilhantismo dos planos-sequência, a demorada cena em “noite-americana” inserida num episódio espúrio ao veio narrativo principal que serve para carregar o filme de iconografia gay feérica ou paródica, e o modo como João Pedro Rodrigues parece insistir num modelo de rebeldia juvenil histérica sem causa, personificada pelo namorado do protagonista, verdadeiro Rosário de amarguras, apenas distraem do drama do indivíduo Tonia/ António que entende o amor como um acto de dádiva mas, mais importante ainda, de recebimento.
Há um episódio no filme particularmente discreto, quase anódino, durante a viagem de Tonia e Rosário que se propõem visitar a família do rapaz, mas que se perdem no caminho e vão dar repetidas vezes a uma barragem. O momento em que Tonia sai do carro para olhar a paisagem é a forma mais bonita do filme de João Pedro Rodrigues dar a ver a natureza feminina daquele corpo de homem. Tonia é um receptáculo de afectos e sentimentos tão largo e fundo quanto a barragem em frente cheia de água. É da sua natureza aceitar de volta o namorado que a(o) rouba, que ciclicamente se mete em drogas duras, e que é emocionalmente imaturo. É da sua natureza compadecer-se com o animal abandonado que surge na sua porta, o cachorro Vadio que se juntará à cadelita Agustina. É da sua natureza perder a cabeça e pedir perdão mal se dá conta de que fora injusta(o). Tonia pode bem ser uma mulher de plástico que ainda não se livrou da incómoda picha, mas o seu coração é maternal e protector. É uma grande personagem de cinema (roubada à vida; o filme tomou por ponto de partida a reportagem de Rui Catalão sobre o travesti Ruth Bryden), calorosa e trágica, que talvez merecesse da parte de João Pedro Rodrigues um pouco menos de fazer cinema, uma imitação da vida menos estilizada ou se quiserem mais transparente.
Eu gostava de ter encontrado em Morrer como um Homem apenas o olhar de João Pedro Rodrigues (cada vez mais "fantasma"...), e sabendo-o fortemente cinéfilo não pude deixar de sentir esse olhar filtrado por elementos que reconheço de outros cineastas e de outros universos: de Almodóvar, de Todd Haynes, de Steve McQueen. E isso parece-me sempre um realizador a procurar legitimar-se indo de encontro a pressupostos e iconografia estabelecida. O vermelho pelo sangue. O teatro em vez da vida. Tudo considerado, parabéns João Pedro pela confusão de sentimentos em que me encontro.
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