Cape Fear/Cabo do Medo (1991), revisitado por Scorsese, ficará para sempre como das experiências mais intensas que o cinema me proporcionou. Por intensidade entenda-se medo, algo que faz parte da infância do espectador e que dura enquanto não passamos a recear a realidade, ela própria, acima dos filmes. Cape Fear funciona como terapia familiar extrema. É um exercício de estilo extremo, e basta comparar com o último filme de Martin Scorsese, Shutter Island (2010), outro exercício de estilo ambientado nos géneros do terror e do fantástico, para perceber o fosso que existe entre os níveis de adrenalina injectados por um e outro.
De qualquer modo e pelas várias vezes que o revi, Cape Fear representa um objecto de reverência oscilante. Ora o encontro no tom anticrístico justo, filtrado por uma plasticidade hitchcockiana; ora o desenrolar do cerco de Max Cady (Robert De Niro) dirigido à família Bowden vai-me deixando menos angustiado à medida que se torna demasiado simbólico: a dimensão de biblioteca falante da personagem, que cita a Bíblia, Dante, Wolfe, Miller, a Lei etc, a teatralidade dos gestos "bigger than life", e uma resistência física sobrenatural.
Há ainda a dimensão perversa que atravessa todo o filme, expondo as personagens nas suas fraquezas e vícios, que se mantém a cada novo visionamento igualmente significativa. O filme abre e encerra com a voz e o rosto de Danielle (Juliette Lewis), a filha do casal, aquela que recorda o episódio traumático da vingança de Cady sobre os Bowden, sujeito e objecto de perversão suprema, uma adolescente de quase 16 anos que usa aparelho nos dentes, mostra um imaginário ávido e fecundo, e se passeia com pouca roupa. Cape Fear é uma obra dedicada a ela e a todas como ela. Esta lolita ocupa o último círculo do inferno, onde gelam traidores como Sam Bowden (Nick Nolte) e, acrescenta este filme de Scorsese, os lascivos como nós.