4.09.2007
A dupla vida de Nikki Grace
Três horas, vários corredores na penumbra e tantas outras portas depois, não posso dizer que tenha encontrado passagem, por muito especulativa que fosse, para uma leitura minimamente satisfatória face a INLAND EMPIRE, talvez o mais incompreensível Lynch de sempre. Entrei na sala tão virgem quanto o realizador gostaria que o fizesse: deixei para depois qualquer leitura acerca do que sobre o filme foi escrito (deixo agora link para texto do Rosenbaum, que ao que parece terá adorado INLAND EMPIRE). Sobre o mesmo, salta à vista que Lynch descobriu o vídeo digital (DV) – talvez por curiosidade, talvez por necessidade – e que isso terá permitido dar total liberdade à manifestação de um universo por demais consolidado. INLAND EMPIRE tem no interior os principais temas e metáforas do cinema do norte-americano, apenas que no seu hermetismo e aparente arbitrariedade este parece ser objecto do domínio de uma prática artística no sentido tão amplo e tão abstracto quanto se possa conceber, tal como algumas obras de "cinema-instalação" segundo o inenarrável Matthew Barney (que me perdoem os convertidos!). INLAND EMPIRE não me convenceu de todo ou sequer em parte. Não encontrei suficiente beleza na sua crueza. Não descortinei motivos de interesse no seu deboche narrativo. No entanto, paguei o preço do bilhete e não saí de cabeça vazia. Há pelo menos um tema que me parece sobressair e que já era dominante em Estrada Perdida: falo da traição da mulher que de novo surge representada pelos extremos da puta e do anjo. Verificamos também a existência de um filme dentro do filme, parecendo-me seguro afirmar que os universos da protagonista (Laura Dern/ Nikki Grace, em perplexa e corajosa exposição) colidem quando David Lynch revela que esta ter-se-á envolvido com o actor com quem estava a trabalhar (interpretado por Justin Theroux, que assim transita do anterior Mulholland Drive).
Se o filme já era completa e assumidamente desconexo até aqui, desdobrando-se em universos paralelos que parecem organizados de modo a traduzir o efeito do zapping fora-de-horas por canais que competem na sua bizarria, o que vem depois pode melhor ser descrito recorrendo à metáfora do pesadelo kafkiano figurado por uma espécie de limbo, filmado entre Los Angeles e Lodz, habitado por um grupo de figuras femininas de um bestiário de promiscuidade, que Lynch coreografa ao longo de sucessivos momentos que vão do absurdo ao patético. A personagem de Laura Dern atravessará todo este labirinto sem que fiquemos seguros que dele tenha escapado. Acaba olhando na nossa direcção com expressão catatónica, enquadrada no cenário do que arriscamos ser uma imponente mansão sulista. Mas antes ainda será estrela, no filme dentro do filme, de uma das sequências mais confrangedoras que não imaginávamos que Lynch pudesse vir a filmar: a morte de Nikki, que tem lugar no Passeio da Fama – trocada a fama pela subversiva miséria existencial; a distância do mito pela proximidade da alucinação –, seguida da habitual epifania com musiquinha semelhante à que Julee Cruise cantava em Twin Peaks e do regresso a casa do marido (de alguém!) e do filho em variação do happy end de Veludo Azul. INLAND EMPIRE convenceu grande parte dos indefectíveis de Lynch. As excepções talvez só mais tarde se dêem a ler? Distante do fascínio suscitado por títulos que constituem uma das mais pessoais e estimulantes obras que o cinema deu a conhecer em décadas recentes, só me ocorre dizer que além de enorme “borrada” (Lynch desfigurado e low-tech), este filme é um ainda maior bocejo. Fim de festa.
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