12.30.2009
Morte e ressurreição
Não existe termo de comparação uma vez que nunca antes me tinha proposto assistir a uma série na totalidade, num reduzido espaço de tempo. A sensação de ser projectado ao longo de um fluxo, do final de uma época para o começo de outra, é no mínimo estranha. Da 2ª série de The Wire para a seguinte, é de uma estranheza mais marcada ainda pelo luto. Não revelarei nomes para não estragar o prazer dos não iniciados. Mas há um momento particularmente pungente quando a polícia visita o apartamento de alguém que havia sido assassinado, e tal como o olhar dos detectives somos conduzidos por um espaço que não conhecíamos e que era o último reduto da intimidade dessa personagem fascinante, também pelo secretismo que irradiava. Quando a observávamos sentíamos coisas que não conseguíamos explicar. Era difícil antecipar os seus comentários e as suas reacções. No fundo não a conhecíamos de todo, apesar do fascínio que nos provocava, daí que a leitura que fazemos ao invadir aquele espaço privado e inédito, ao notarmos os seus elementos decorativos, o altar das espadas samurai, a prateleira dos livros de onde alguém retira um exemplar de The Wealth of Nations, de Adam Smith produz, por via da profanação em curso, um efeito de alargamento da aura da personagem sem que consigamos colocar mais alguma coisa no seu interior. Isto é bem exemplificativo da qualidade de escrita da série criada por David Simon. Um realismo que se abre à acumulação de muitas camadas até se tornar abstracto como a natureza dos homens. E quando um dos protagonistas morre, quando desaparece alguém que nos habituámos a acompanhar de perto, constatamos que nada sabemos dessa personagem. Como nada sabemos uns dos outros. Tal como nada sabemos da vida. Saímos de uma temporada para entrar na época seguinte como se de um mistério contínuo se tratasse. Algo que face a nós se suspende, como a morte, para de seguida ser reatado, como numa ressurreição. Estranhamente também, a sensação de fim é tão mais intensa quanto mais breve se afigura a possibilidade de recomeço.
Arquivo do blogue
-
▼
2009
(484)
-
▼
dezembro
(33)
- Morte e ressurreição
- Promessa
- Convidado II
- Convidado I
- Uma década completa
- Contracampo
- Extremely cOOl
- Natal no Monte Estoril
- Raça de dentro
- Hyper-dubbing
- Multiópticas
- Qualidade francesa
- Natal em Baltimore
- Discos da década e discos do ano
- Menina caixão
- Cinema. Doze escolhas para uma década (2000/2009)
- Chama-me Tarzan
- Ele é o elo
- To hell with Altman
- Os melhores DVD's de 2009
- Sem favor
- Fevereiro negro
- O número mágico
- Iniciais B.B.
- Os pontos específicos
- Barreira de som
- Os melhores filmes estreados em sala em 2009
- Bazófia
- Leãozinho (o meu desencontro com Caetano)
- A Nogo abre terça-feira
- O triunfo do escárnio
- Neko, à margem da lei
-
▼
dezembro
(33)