«Jaime Ramos recorda aquele quarto minúsculo em Espinho – e as janelas abertas por onde entrava o ruído do mar, misturado com o cheiro das farturas, o ruído de um comboio que passa entre as dunas, o jornal dobrado e lido. Lia era um nome que não se esquece e que cheirava a rosas. Esperava por ela aos sábados à tarde, na estação, avistava aquele casaco comprido, o cachecol azul, azul-turquesa, não era um cachecol bonito, mas visto de perto tinha uma espécie de relevo, de enfeite, e ele gostava do cachecol porque ela tinha um pescoço bonito e ele ficava em silêncio, deitado, a observar as veias do pescoço, um contorno, uma ruga minúscula, uma pequena cicatriz, e ele ficava a olhar, distraído, enquanto Lia, adormecida, de braços estendidos ao longo do corpo, lhe fazia lembrar uma coisa que ele só entendeu mais tarde – uma espécie de beleza impura, de beleza oculta sob a aparência das coisas banais. Coisas que se detectam dificilmente, uma traição no olhar, um tremor na pele, uma veia que demora a recuperar a tranquilidade. Uma beleza difícil.
Aprendeu a reconhecê-la em Lia, mas não sabia dar-lhe um nome – era a beleza oculta, mascarada de pudor, aquele casaco azul. Havia a forma como Lia tirava a roupa, quase escondida, o cinto deixara uma marca na barriga, ele gostava de passar a mão sobre a marca do cinto que apertava a cintura, e a forma como fodiam depois, e ele observava Lia na rua e sabia que só ele sabia que os dois fodiam daquela maneira, por detrás daquela máscara de pudor. Amou o pudor, daí em diante, mais do que as evidências, a exibição, a conversa sobre sexo. Eram um casal que se encontrava em Espinho. Apenas isso: um casal que se encontra em Espinho enquanto Emília não aparece na sua vida.
Oh, as mulheres. As mulheres que mudaram e não mudaram a sua vida. Lia, Rosebel, Emília, Maria Luísa, Rosa, as mulheres que se sentaram ao seu lado no cinema, as que ele aprendeu a cortejar, as que esqueceu, as que não lembra, as que estão a um palmo de distância, as que o levaram a dançar num modesto clube de bairro, de vestido novo, com aquele cheiro de domingo à tarde, o mais triste dos cheiros dos dias da semana. E os domingos à tarde, justamente, Lia e ele, deitados na cama do pequeno apartamento de Espinho, 10 de Setembro de 1972, deitados, ele levanta-se e vê os comboios cruzarem-se na linha do horizonte. Lia puxa o lençol para cima, ele liga o rádio, a sorrir, deita-se de novo, agora sobre ela, ouve-se o relato de um jogo de futebol (ele relembra a Guiné, de onde regressara para os braços de Lia), um ruído longínquo que entra no quarto à mistura com o vento que, na rua, arrasta lixo e poeira em ruas que vão ficando desertas com o crepúsculo alaranjado e cinza. Ah, as mulheres.
O que eras em 1972? Um homem a despedir-se. Despedidas de África. Lia – de quem se despediu no cais de uma estação de comboios, entre gente que subia e descia as escadas. Ele não olhou para trás. Onde estaria Lia, agora? Ah, as mulheres, um músculo móvel no tornozelo, a palpitação de uma veia, um calor, uma imperfeição de que se aprende a gostar, adorável imperfeição – a de um risco na pele, uma gordura a mais, uma dobra na pele, um sinal de perguiça, de mau-humor, uma pequena rouquidão ao acordar, a forma como acordam, uma penugem na barriga, ou por baixo do ouvido esquerdo, aquele que fica mais próximo, ah, as mulheres. [...]»
[O Mar em Casablanca, Francisco José Viegas, Porto Editora, págs. 160/161]
11.02.2009
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