11.07.2009

De cães e de homens (e de prémios)


















Aqui está um filme que através do cão engrandece o homem. E uma interpretação – que se destaca da qualidade altíssima do conjunto – que nos coloca de quatro no chão. Dean Spanley apresenta a mais antiga das propostas: a da reparação da dor pela narrativa. Existe uma história no interior da história do filme, que uma vez conhecida a sua conclusão, permitirá fazer um luto antigo (ou antes, dois lutos). O filme do neo-zelandês de adopção Toa Fraser, que adapta a novela de Lord Dunsany, My Talks With Dean Spanley, publicada pela primeira vez em 1936, é um pequeno milagre. Uma comédia sofisticada que parece Dickens filmado ora por Jean Renoir, ora por Tim Burton. À superfície evocação inofensiva, Dean Spanley acaba tocando os mistérios da natureza humana. Sobretudo os da natureza masculina. Trata-se de um filme de homens. Dos seus silêncios. Dos seus hábitos. Do seu orgulho. Da couraça que mostram para não dar parte fraca. O argumento de Alan Sharp é trabalho superlativo de graça e encanto, decantação primorosa da língua inglesa que soa aos ouvidos como o mais precioso Stradivarius. Dean Spanley trata ainda da alma britânica, profundamente conservadora. Elegia dirigida ao passado distante, dada com tal leveza de tom que não provocará as nossas mentes progressistas. A provocação está sim guardada para o próprio filme, que deste contexto marcadamente reaccionário tira a história de um homem, o deão Spanley do título, que acredita ser a reencarnação do cão (considerado pelo dono como "one of the seven great dogs", que diversas vez se lhe refere nestes termos) que pertencera a um homem que perdeu o filho mais velho na guerra da África do Sul com os Boer. Que maior provocação que a apologia do dono, do chefe, da autoridade de quem manda, do prazer de ser-se mandado, na actual época que promove líderes a todo o instante, fazendo-nos sentir a muitos de nós autênticos falhados? Estamos perante um filme sábio, que recolhe o saber dos tempos antigos, que maravilha com a fibra dos que têm génio a valer (uma espécie de carácter agridoce onde colidem brusquidão e ternura, delicadeza e esquiva), que tem o charme adulto das melhores fábulas. E um filme comandado pela presença de Peter O'Toole que de novo se supera na figura de um aristocrata de província, o desagradável Horatio Fisk. O velho Fisk é o "secundário" que se apodera do coração do filme: memorável coração que mais do que justifica a demasiado adiada coroação na próxima noite dos Oscars. Era o prémio a prestigiar-se acima do premiado com a distinção de um dos maiores: one of the greatest (dogs), sem dúvida.

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