Apenas eu e a tela. Ela somente, e eu. Proeza menor do retrato de Pedro Costa é a circunstância de nos enamorarmos por Jeanne Balibar. Basta pensar na última vez que um rosto se nos manifestara com tal esplendor; que uma voz nos encantara com o pudor da sua exposição. Costa é alguém que marcha claramente na direcção oposta ao caminhar do mundo, daí que a vitalidade do seu cinema nada tenha de ilusória. São filmes também habitados por fantasmas, mas que se sentem com o corpo e no corpo. Objectos que requerem atenção, disponibilidade para ver os pequenos milagres: um gesto revelador, um rosto que se ilumina ou fecha, o sortilégio particular da natureza humana. Ne Change Rien resulta no retrato de Jeanne Balibar (com banda) – a mulher, a cantora, a actriz – no trabalho, dando por outro lado a sentir a presença do cinema dos vivos e dos mortos. A voz de Godard, samplada, que ouvimos dizer "não mudes nada, para que tudo seja diferente". O gato preto de Tourneur que atravessa um dos quadros. Os planos agachados a fazer lembrar o cinema clássico japonês. A espectralidade das formas sugerida em imagens que reenviam para os filmes de Andy Warhol. A canção Johnny Guitar que evoca Nick Ray muito distante da citação. Até a transferência de elementos que associamos com a obra de Pedro Costa, para cenários onde nunca tinham sido vistos antes: por exemplo, o beco onde observamos o pianista que acompanha os ensaios da opereta de Offenbach, sentimo-lo como parte dos corredores labirínticos do bairro das Fontainhas. É como se os filmes de Pedro Costa contivessem o cinema e algo mais que isso. Um mundo que ele dá a ver a partir da sua forma muito própria de olhar o mundo em volta, contaminada pelo desejo de um mundo ideal. Suspenso. Luz, sombras, negro, músicos, canções, a intimidade que a câmara se recusa devassar. Escolhidos os enquadramentos, o plano fixa-se e dura o que tiver de durar. É preciso muito peneirar para dar com o ouro, mas ajuda ter capacidade para sentir onde ele pode ser encontrado. Aquilo que se afigura como pequena proeza é também resultado do esforço suplementar de alguém semelhante a nós. A fixidez de um olhar que permite observar (ampliando) as discretas mudanças que fazem de cada instante um momento particular. Uma suspensão ou um pequeno êxtase.
11.23.2009
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