11.09.2009
O bolero é o destino do corno
Os Sorrisos do Destino (estreia 5ª feira) arranca com a câmara de Fernando Lopes a dançar o bolero fétiche do realizador, Sabor a Mi, em torno da estonteante modelo Ana Isabel, que parece estar a ser fotografada para uma marca de lingerie. A aproximação à fémea é muito etéreo-sexual, expressão que o protagonista Carlos Manuel ou Manuel C. (excelente Rui Morrison) usará para se caracterizar lá mais para o fim. É a volúpia do olhar que (já) não deseja o contacto, apenas o prazer visual. É também o primeiro de vários boleros que Fernando Lopes espalha por este seu novo filme: uma obra que só dissimuladamente quer dar-se ares de moderna. E um prazer tanto maior quanto mais íntimos formos da realidade que a precedeu, e que Fernando Lopes assume. Trata-se de um terno ajuste de contas com a separação que o realizador viveu em período recente. Lopes retrata-se em Rui Morrison, com a atracção pela bebida, por estados contemplativos (melancólicos), por casacos de bombazine e, claro está, pelos boleros, na mesma medida que Ada (Ana Padrão) é um reflexo ficcional e carregado de private jokes da ex-mulher do realizador.
Esqueçam o suposto comentário que o filme se "propõe" fazer às relações num momento em que as pessoas estão cada vez mais umas com as outras à distância (telemóveis, Internet, tudo isso), que é um pouco coxo, assim com frágil é o modo como Fernando Lopes filma (que não me parece ter que ver com a ligeireza de tom, essa sim claramente intencional e mordaz), no que não é ajudado pela opção pelo vídeo digital que resulta num efeito de má televisão. Olhem sim, e olhem com muita atenção, para aquilo de antigo que está no filme e que faz parte da natureza nostálgica e sonhadora do realizador, que permite fazer do ressentimento que acompanha o fim de qualquer ligação uma história de solidariedade masculina (Manuel C. e Manuel B, amante da mulher do primeiro, passarão juntos grande parte do tempo, e se isto não é a ironia sábia a funcionar não vejo o que mais possa isto ser), plena de cavalheirismo e de saborosa cumplicidade.
Vão-se as mulheres mas teremos sempre o presuntinho 5 Jotas, o vinho Duas Quintas e, como é óbvio, os boleros de Los Panchos. O resto é silêncio.
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