6.04.2009
Um bagaço na Terra do Fogo
O cinema é outra das artes onde nada mais há que inventar, e as surpresas surgem quando surgem por um efeito de resistência ao modelo dominante. Eu gosto do modelo dominante. E de quando em vez deixo-me levar pelo radicalismo asceta de alguns cineastas.
Serve a reflexão curtíssima para introduzir o cinema de Lisandro Alonso (na imagem), cuja obra conheço numa quarta parte, um título apenas: Liverpool (que a Cinemateca programara inicialmente para esta terça-feira, mas que acabou por passar no dia seguinte devido ao atraso na chegada da cópia). Liverpool tem uma narrativa minimal, e é um daqueles casos em que o que se vê no ecrã parece tomar um rumo imperturbado pela presença do cinema mesmo ali defronte. Há um indivíduo embarcadiço que pede para descer no porto de Ushuaia (diz-se “ussuaia”) para visitar a mãe que não vê há muito. Apanha boleia numa camioneta que transporta madeira, até uma povoação no interior. Lá chegado vemos que a mãe está praticamente moribunda, que vive com uma jovem débil mental que poderá ser a filha que o indivíduo abandonou anos antes, e que é tratada por um vizinho também idoso que caça, que pede ao homem que se vá embora porque ninguém ali quer saber do seu regresso. O homem chama-se Farrel (Juan Fernandez), dorme onde calha, e usa para se aquecer uma garrafa de bagaço que despeja nas mais variadas ocasiões, certificando-se sempre primeiro de que não há ninguém por perto. O actor que faz de Farrel é parecido com Vincent Gallo. Toda a gente foi dessa opinião. E o cinema de Lisandro Alonso também deixa notar algumas afinidades: a deambulação ébria de Otar Iosseliani junto com o burlesco hirto de Aki Kaurismäki estão lá. Parecenças que de facto se reconhecem. Assim como a proximidade para com o cinema do chinês Jia Zhangke, na ligação que Alonso estabelece com figuras que habitam cenários remotos, a partir de uma distância que confere ao filme quer o pudor, quer a empatia.
Depois existe ainda o efeito (ainda para nós) desconcertante que é olharmos um filme que abandona o protagonista a um destino que não acompanhamos, mesmo que previsível, para se ocupar da rotina dos que ficam. E a chave do título, Liverpool, que tal como o “rosebud” de Orson Welles nos é dada no derradeiro plano, através do porta-chaves deixado para trás na posse de alguém que habitando aquele universo dá a sensação de viver num outro mundo só seu. Lisandro Alonso é um simpático provocador que faz do cinema uma aventura solitária, solidária, e calorosa.
Para o amigo Manuel Mozos, nas vésperas de completar meio século de vida.
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