2.19.2009
Último sangue
Eastwood realizou certo dia o filme que enterrou o género cuja mitologia Eastwood ajudara a projectar: o Western. Em Gran Torino, Clint Eastwood termina com a sua persona cinematográfica. E fá-lo literalmente. Mas antes, partindo da caricatura grotesca que parece construída com os chavões (machista, xenófobo, justiceiro) que lhe aplicaram quando não era consensual e muito menos considerado um Autor, Clint Eastwood vai retirando lasca após lasca à sua personagem, Walt Kowalski, até sobrar apenas a figura mais humana que a própria vida. Gran Torino é o filme em que Eastwood dá o corpo às balas, dele e de outros, e como nunca antes é da sua destruição que nasce a possibilidade de herdarmos «o mundo» corrigido por tão desconcertante (e desarmante) exemplo. É sabido que ninguém podia fazer de Eastwood a não ser Clint himself. Desconhecíamos no entanto as nuances extremas que decorrem da aceitação do acto de filmar-se «na corda bamba»: da auto-paródia, da caricatura que caso se impusesse ao filme lhe retirava a possibilidade da transcendência – aquilo que o espectador esperará que ocorra de alguma forma, como nos exemplos da despedida à chuva de As Pontes de Madison County, ou da morte induzida em Million Dollar Baby.
Gran Torino é uma espécie de irmão de série B de Imperdoável. Walt Kowalski pode ser visto como a versão envelhecida do sargento Tom Highway, de Heartbreak Ridge, no prolongamento da rabugice do Frankie Dunn de Million Dollar Baby, e da truculência dos Space Cowboys. É o filme onde, por paradoxal que seja, Eastwood se desprende e nos liberta da sua imagem iconográfica de «herói macho» (quem não alimentou até final as expectativas de um outro desfecho que atire a primeira pedra…), ao mesmo tempo que a fixa na eternidade: pense-se na leitura a tirar do plano desfocado da condecoração de guerra colocada no peito do jovem Thao, para sempre marcado pela decisão do seu protector. Gran Torino é daquelas proezas que só estão ao alcance dos que nada têm a provar. Eastwood deixa neste filme o seu último sangue.
Gosto muito de cinema, mas gosto muito mais de Clint Eastwood.
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