3.17.2010
Lourenço Mutarelli
[...] O botequim que serve o pior café da cidade está aberto. Júnior pede um conhaque. Há outro náufrago a dois assentos, bebendo cachaça. Há tanta amargura no rosto dele que Júnior procura puxar papo.
– Dia estranho, não é mesmo?
– Como?
– Dia estranho.
– Todo dia é estranho.
– Não. Hoje... essa névoa... as ruas desertas...
– Pra mim, todo dia é estranho. Eles nunca me convencem.
– Quem não te convence?
– Os dias... são falsos... estranhos... isso não pode ser a realidade... não é possível que seja... isso é... sei lá que porra é isso tudo.
– Talvez...
– Sabe? Eu descobri como funciona esse esquema.
– Ah, é?
– Você já viu aquele planetinha daquele livro do Pequeno Príncipe?
– Sei, acho que me lembro.
O outro faz um gesto com as mãos formando uma esfera no ar.
– É um planetinha, pequeno... Tem uma flor e acho que uma casinha... É assim.
Diz isso projectando a pequena esfera na direção de Júnior.
– Sei, sei...
– É isso, porra! É isso...
– Entendo.
– Entende, nada. Entende?!
O outro faz um gesto de desprezo que desmancha a esfera.
– Eles botaram a gente aqui.
– Claro...
– Deus botou a gente nesse planetinha do caralho. Do caralho do Pequeno Príncipe. Aí ele falou: Meu amigo, tudo isso é seu. Tem ali uma plantinha de merda que dá um fruto gostoso. Ali tem uma vaquinha da bosta que dá leite. E tem trigo pra fazer pão. Até aí tudo bem, não é?
– É tudo o que precisamos...
– É. Mas aí ele mostra um buraco na terra. Um buraco feito uma cova.
– Certo...
– Então ele diz: Tudo isso é seu. E ainda vou te mandar uma mulher e umas crianças... Isso eu acho que é só pra encher o nosso saco e distrair a gente dessa merda toda. Assim não sacamos o esquema, tá ligado?
– E qual é o esquema?
– Posso continuar?
– Claro.
– Então faz favor de não ficar me interrompendo. Bom! Aí Deus explica o esquema. Ele diz: Meu filho, tudo isso é seu. A única coisa que você precisa fazer é tapar aquele buraco. A tal cova que eu te falei.
– Sei.
– Pois então. Cada vez que esse homenzinho tapa a porra do buraco, acaba fazendo outro do mesmo tamanho. Percebe?
– Entendo.
– Então. É isso. É isso sem fim. Tapa um buraco, faz outro igual. Tapa um, faz outro. Até o dia em que o infeliz morre. Só assim você pode tapar o buraco sem fazer outro igual. O buraco é sob medida.
– Legal.
– Porra! Legal, o caralho!
– A história, quis dizer.
– Ou seja, é pau no teu cu. Percebe? É isso. Pra Deus nós somos apenas os que podem tapar o buraco que ele não conseguiu tapar. Entende? É como na obra. Se falta areia, cê não faz parede. Não adianta tijolo, nem cimento. Eu acho que Deus errou nos cálculos. Aí, como já estava de saco cheio, inventou a gente. Tipo umas formigas. Uns formigões. Sacou?
– Tem aquela música que diz mais ou menos isso. Como é mesmo? Ah! – Júnior cantarola: – Essa é a terra que queria ser dividida, é a terra que te cabe nesse latifúndio...
– Não tem nada a ver. Isso é política. Política! E nós estamos falando de religião. Religião!
– Está certo...
– Percebe?
– Claro.
– Uns formigão do cacete!
Júnior termina a bebida. O filósofo não pára mais de falar.
– Bom, meu amigo, eu vou nessa.
– Vai, formigão, vai que vai!
Júnior caminha pela rua nebulosa. [...]
A Arte de Produzir Efeito Sem Causa (Quetzal, 2010), págs. 56/59.
EU PERCEBO DE CINEMA, PERCEBO DE MÚSICA, PERCEBO UM POUCO DE FUTEBOL, PERCEBO POUCO DE LITERATURA. ESTE LIVRO É GENIAL.
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