10.17.2008

"Z32" (doclisboa 2008)

A organização do doclisboa escolheu o último filme do israelita Avi Mograbi para abrir a edição deste ano. A opção recaiu num objecto a vários níveis desconcertante. Mograbi filma um ex-soldado israelita de uma unidade de elite que se dispôs a reconstituir para a câmara os acontecimentos de uma missão de retaliação (a um atentado terrorista) de onde resultou a morte de alguns polícias palestinianos. Os rostos do rapaz e da namorada (esta funcionando como espécie de espectador naturalmente comprometido) foram disfarçados na pós-produção com um conjunto de máscaras que vão do comum desfocar da imagem até à colocação de uma caraça digital que ajuda a dar um aspecto de teatralização às imagens e à narração. E a desconstrução não se fica por aqui. Avi Mograbi vai intercalando alguns números musicais que o próprio interpreta (sobre palavras suas), e onde a ambiguidade moral do projecto é mais pulverizada ainda. A questão do reconhecimento da identidade do ex-soldado é constantemente referida. Caso fosse descoberta, é natural que ele viesse a estar em muito maus lençóis. E o espectador procura instintivamente tentar encontrar as feições verdadeiras daquele que confessa um crime de guerra que adquire contornos pouco reais, porque demasiado realistas. Ouvimos falar na rapidez da operação, no barulho ensurdecedor dos disparos, dos vultos palestinianos na noite, e a impressão que fica é que a hipótese de remorso acaba sendo atenuada por estes vários factores. A morte resulta camuflada pelas contingências da operação, e até mesmo o exercício de rememoração não deixará sequelas no protagonista. O mesmo já não poderá ser dito em relação à sua namorada, que parece mais perturbada pelo testemunho do que o confessor. Z32 é um objecto claramente inteligente, que deixa atrás de si campo aberto à especulação. A narrativa detona à nossa frente mas é provável que o efeito dos estilhaços só se venha a fazer sentir naqueles que estejam dispostos a reflectir mais tarde no processo de construção do filme. Estamos habituados ao relato emocional deste tipo de episódios (e para exemplo recente temos o filme de Paul Haggis, No Vale de Elah), e Avi Mograbi sabota constantemente essa possibilidade. O que parece interessar ao documentarista é o processo de desumanização que se opera num tropa especial colocado perante situações extraordinárias, e as suas consequências (ou ausência destas). A morte como catarse de um condicionamento intensificado no decorrer do treino militar, que ela se permite aliviar. Os factos narrados parecem fazer parte de uma cadeia de sonho ou de uma experiência sensorial que apaga a identidade do outro. Como se a morte sem rosto não passasse de um pesadelo.

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