3.13.2009

Eu confesso

















É duro passar pela vida sem acreditarmos em alguma coisa. E com as crenças de um homem ninguém deve mexer, a não ser que estas entrem em conflito com a liberdade dos demais. Vem isto a propósito de Gran Torino e da relação ambivalente que o protagonista, Walt Kowalski, manifesta face à igreja. A personagem de Eastwood reage a uma instituição que o próprio julga por duas ordens de ideias: demarcando-se da hipocrisia que facilita a paz de espírito para os que não sentem o real peso dos seus actos ou pensamentos, e divorciando-se de um mundo onde cada vez é mais difícil levar uma vida decente fundada na clara diferença entre o bem e o mal. A fé é antagonista do compromisso no sentido em que deve ser libertadora. A questão é que o sentido da vida só se completa no prolongamento daquilo que somos nos outros, baralhando-se uma vez mais as coordenadas, agora do que se entende por narcisismo e o que em nós manifesta uma capacidade de agir de modo altruista. Gran Torino move-se em dois tabuleiros, e em ambos o tempo inteiro. O espectador joga também, e a riqueza do filme só se realiza na compreensão destes trajectos paralelos: Eastwood vai buscar à vitalidade do seu legado a capacidade de fazer projectar a sua herança. O seu derradeiro apagamento, tal como em filmes anteriores, é o preço a pagar para que a influência se faça sentir no que fica depois. Ele quer hoje sair porque é inevitável, e ao mesmo tempo não concebe um mundo onde os seus parâmetros morais não sejam exercidos. Daí que Gran Torino seja talvez difícil de celebrar para alguém que não tenha estabelecido cumplicidade prévia com a persona de Clint Eastwood no cinema. Clint, o narciso; Clint, o agente reparador; Clint, o homem vulgar cheio de defeitos que se transcende na capacidade de se sacrificar por algo que passou a ser mais importante do que ele próprio. Walt Kowalski confessa instantes antes do final, tudo arranjado como num ritual, coisa a que o Ocidente dificilmente dará devida importância, que os seus principais pecados foram ter beijado outra mulher quando já era casado, ter ficado com o dinheiro que cabia ao governo num pequeno negócio, e o de nunca ter conseguido aproximar-se dos filhos. Os pecados são os de um homem como qualquer outro, e a dádiva do homem que se transcende em vida (e pela morte) é o movimento mais bonito que Gran Torino tem para partilhar connosco. É como se Eastwood nos dissesse que a vida se pode ganhar num último gesto que seja o correcto. Um gesto maior do que qualquer absolvição, quando ela de facto só pode vir de nós. Paz ao seu corpus. Paz à sua alma.

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