Arrisco dizer que Birth teve passagem discreta pelas salas do mundo inteiro. Recordo a estreia do filme em Portugal, mas por algum motivo que não lembro não fui vê-lo na altura. Perdi então não apenas a possibilidade de o encontrar nas circunstâncias ideais em que qualquer filme deve ser visto, como tiveram de passar meia dúzia de anos para que me cruzasse com um dos mais singulares e fascinates filmes da década.
Dirigido por Jonathan Glazer (n. 1966), que havia percorrido os universos da publicidade, dos videoclips, do teatro e da televisão, afirmando-se com uma primeira obra chamada Sexy Beast – que agora vou correr a ver se arranjo –, Birth parte da possibilidade do nascimento de uma história de amor (para ser rigoroso, do seu renascimento), entre uma mulher que pertence a uma família rica e culta do Upper West Side nova-iorquino e uma criança que afirma ser o marido dela falecido dez anos antes. O que é maravilhoso em Birth é o facto do seu realizador, Jonathan Glazer, encontrar um tom intenso, sóbrio e elegante próximo do cinema de Roman Polanski (Rosemary’s Baby) e de Stanley Kubrick (Eye’s Wide Shut), na apropriação do potencial plástico e emocional da história bastante implausível, que confere a Birth uma espécie de beleza glacial que o resgata de qualquer cedência a um oportunismo metafísico ou sobrenatural. O filme envolve-nos como num feitiço, e a dada altura (que será diferente consoante o espectador) descobrimo-nos libertos das amarras da verosimilhança que uma premissa como aquela implica.
Birth é um objecto que se coloca fora do seu tempo (o argumento tem elementos e temas próprios a um romance do séc XIX: culpa, luto, cartas de amor que não foram lidas), parece suspenso lá em cima junto com o majestoso apartamento onde a viúva Anna (a superlativa Nicole Kidman, que tira partido da expressividade dos ínfimos detalhes do seu rosto, aqui mais descoberto no cabelo curto como Mia Farrow ou Jean Seberg em tempos usaram) vive com a matriarca da família, interpretada por Lauren Bacall. Birth é um filme de interiores com história, em cores orgânicas com verdes e castanhos, e de exteriores outonais com ramos despidos e a presença da neve que lhe reforça a atmosfera de intemporalidade.
É comum procurarmos explicar as emoções que um filme nos suscita, e dificilmente um filme será importante para nós se não nos emocionarmos. As emoções que Birth em mim produz não têm tanto que ver com o seu lado melodramático, com a possibilidade desconcertante da recuperação do amor adulto no corpo de uma criança, antes com a articulação dos elementos propriamente cinematográficos: da partitura esplendorosa de Alexandre Desplat, à notável direcção de fotografia de Harris Savides (habitual colaborador de Gus Van Sant), e à découpage de Glazer que reunidas atribuem ao filme uma impressão de sonho desperto. O que emociona verdadeiramente em Birth é da ordem da linguagem puramente visual, coreografada, e deixa-me sem outras palavras. Birth é um espanto.