6.11.2008

O meu reino por este livro

























(...) Quão inútil a tarefa do homem, cabeleireiro de si mesmo, repetindo até à náusea o mesmo corte quinzenal, pondo a mesma mesa, refazendo as mesmas coisas, comprando o mesmo jornal, aplicando os mesmos princípios aos mesmos contextos. Pode ser que exista um reino milenar, mas se alguma vez chegarmos a atingi-lo, se chegarmos a sê-lo, deixará de se chamar assim. Enquanto não tirarmos o chicote da história do tempo, enquanto não acabarmos com o inchaço de tantos até, continuaremos a tomar a beleza como um fim, a paz por um desiderato, estaremos sempre do lado de cá da porta, onde a realidade nem sempre é má, onde um número considerável de pessoas encontra uma vida satisfatória, perfumes agradáveis, bons ordenados, literatura de alta qualidade, som estéreo, e para quê inquietarmo-nos se o mundo é finito, se a história se aproxima do seu ponto óptimo, se a raça humana se apresta para sair da Idade Média para entrar na era cibernética. Tout va trés bien, Madame la Marquise, tout va trés bien, tout va trés bien.
De qualquer modo há que ser imbecil, poeta, completamente louco para perder mais de cinco minutos com este género de nostalgias facilmente liquidáveis a curto prazo. Cada reunião de gerentes internacionais, de homens-da-ciência, cada satélite artificial, hormona ou reactor atómico esmagam um pouco mais estas falsas esperanças. O reino será de material plástico. Não é que o mundo vá acabar convertido num pesadelo de Orwell ou de Huxley; será muito pior, será um mundo delicioso, feito há medida dos seus habitantes, sem um mosquito, sem um analfabeto, com galinhas enormes e provavelmente com dezoito patas, todas elas deliciosas, com casas-de-banho telecomandadas, água de cores diferentes consoante o dia da semana, uma delicada atenção do serviço nacional de higiene,
com uma televisão em cada uma das divisões da casa, grandes paisagens tropicais para habitantes de Reiquiavique, vistas de iglôs para os de Havana, subtis compensações para domesticar toda e qualquer rebeldia,
etcétera.
Um mundo satisfatório para pessoas razoáveis.
Mas será que vai restar alguém, algum homem, que não seja razoável?
Num canto qualquer, um vestígio do reino esquecido. Numa morte violenta, que castigue o infractor por se ter recordado do reino. Numa gargalhada, numa lágrima, a sobrevivência do reino. No fundo, não parece provável que o homem acabe por matar o homem. Vai-lhe escapar, vai apoderar-se dos comandos da máquina electrónica, do foguetão espacial, fintar tudo isso e depois que o apanhe quem puder. Pode matar-se tudo, menos a nostalgia do reino. Levamo-la na cor dos olhos, em cada amor, em tudo o que nos atormenta profundamente, em tudo o que nos empurra, em tudo o que nos engana. Wishful thinking, talvez, mas essa podia ser outra definição possível do bípede implume.

págs. 432/33

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