8.28.2006
Miami superficial
A marca de sofisticação do cinema de Michael Mann (n. 1943) é observável pelo menos desde o seu terceiro filme – Manhunter (86), que assinala a aparição de Hannibal Lecter no grande ecrã -, onde teve início a longa colaboração entre o realizador americano e o director de fotografia italiano Dante Spinotti, interrompida quinze anos mais tarde quando Mann filmou a biografia de Muhammad Ali. Colateral (2004), com um surpreendente Tom Cruise a fazer lembrar os replicantes de Blade Runner, marcou o começo de nova parceria que se prevê longa entre Michael Mann, Dion Beebe na imagem e as cada vez mais sofisticadas câmaras digitais de alta definição. Miami Vice, cuja maior parte da acção tem lugar à noite, é resultado daquilo que o vídeo digital permite hoje em termos de definição de leitura e de profundidade de campo, sobretudo nas cenas nocturnas e ninguém poderá negar o seu poder sugestivo e a sua enorme legibilidade. Se alguma coisa há a lamentar das consequências tiradas por Miami Vice deste dispositivo formal, é o facto de se sentir que o fascínio pela ligeireza e mobilidade do equipamento equivale à demasiada proliferação de pontos de vista, acentuada por uma montagem cujo virtuosismo nem sempre anda a par do investimento dramático que se revela o calcanhar de Aquiles de Miami Vice. A sofisticação atmosférica e o brilhantismo visual que são apanágio do cinema de Michael Mann, não encontraram no filme escrita de argumento à altura: tendo a mesma recaído sobre Mann e o criador da série televisiva com o mesmo nome, Anthony Yerkovich.
Miami Vice parece refém de um hedonismo juvenil que vai da escolha da dupla de protagonistas (Jamie Foxx e Colin Farrell) com pouco carisma e com um look que não sofre a mais pequena amolgadela – à semelhança do que acontece nos filmes de James Bond – ao longo das duas horas e meia de peripécias envolvendo os mais temíveis traficantes da Florida e das Caraíbas. Aliás, Miami Vice torna-se particularmente previsível à medida que caminhamos para o seu desenlace, com o interesse da operação policial a assentar quase exclusivamente na cavalagem dos barcos e dos automóveis topo de gama que reforçam o efeito de catálogo de um projecto que terá algures negligenciado a espessura humana dos personagens. Basta recordar, esse sim, filme extraordinário que é Heat, Cidade Sob Pressão (95), também de Michael Mann, com Al Pacino e Robert De Niro, para encontrar justiça nos encómios escritos a propósito de Miami Vice. Heat bate-o aos pontos em todas as frentes: na complexidade da intriga; nas relações de identificação e complementaridade que estabelece entre o universo dos polícias e o dos criminosos; no pathos criado em torno das figuras principais; no ritmo ora contemplativo ora nervoso da montagem; na escrita que a câmara de Mann estabelece e nos significantes desta; nessa soberba coreografia que é o tiroteio nas ruas de Los Angeles após o golpe abortado; inclusive na utilização que faz da banda-sonora original e seleccionada que se adequa na perfeição aos motivos reflexivos; enfim, em tudo aquilo que Miami Vice emprega com excessiva confiança nos méritos do seu tropicalismo visual bruxuleante. É que não basta ser digital (levado às últimas consequências) se não existirem personagens maiúsculos dentro. Michael Mann agarrou-se ao conceito subjacente a uma das frases proferidas por um dos seus vilões (de que “os meus olhos estão em todo o lado”) e ficou-se pela experimentação acelerada que atropela o drama e a possibilidade de uma maior emoção que não apenas estética. A notícia de que para o ano surgirá uma versão de Heat em videogame leva a supor que o cinema de Michael Mann possa vir a ser formatado, de modo cada vez mais consciente, de acordo com essa expectativa. Será?
Já houve exemplos de textos originalmente produzidos para a imprensa que são depois reproduzidos em blogues. Não sei se inauguro aqui uma categoria nova, mas a fazê-lo será a dos textos projectados para a imprensa (no caso, uma revista) que vêm a acabar no blogue. À atenção deste, deste, deste e deste senhor. Sem pretender reactar quase polémicas.
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