6.14.2006

Diário de um homem sábio


















TRINTA ANOS ESTE DIA
por João Pereira Coutinho (Folha Online)

1º de Junho

Amigos próximos perguntam várias vezes como nasceu a minha patológica megalomania. Considero a pergunta ofensiva e, como gênio, não respondo a perguntas ofensivas. Mas, aqui entre nós, eu sei, eu sinto, eu sofro com a verdade primordial. A minha megalomania nasceu comigo, trinta anos atrás. Nasceu hoje. Nasceu no Dia Mundial da Criança. E não é fácil nascer, e crescer, no Dia Mundial de uma criança que julgamos ser nós. Então saímos para a rua e a rua está em festa: crianças de todo o mundo, honrando a nossa existência com uma alegria sincera. Por favor, não é necessário tudo isso, pensa a criança mundial, confrontada com seus vassalos.

Intensa terapia acaba com qualquer equívoco. Sei hoje que o Dia Mundial da Criança não foi criado em minha honra. Muito menos em honra de Marilyn Monroe que, leio agora, nasceu no mesmo dia, precisamente oitenta anos atrás. Ah, doce Marilyn, como eu te entendo. E como eu gostaria de ter trocado umas palavras, e alguns fluidos, a respeito. Marilyn teve fim trágico. Calmantes. Instabilidade emocional. E amorosa. Mas chega de falar de mim. Dizia eu que Marilyn teve fim trágico. E eu suspeito que o Dia Mundial da Criança teve palavra decisiva em desfecho mortuário. Não é fácil crescer num mundo que, afinal, não nos pertence.

2 de Junho

Entrar nos trinta tem as suas vantagens. Exemplos? Não dormir uma noite inteira a pensar no assunto. Assustado, eu? Qeum dsise uam cosia dsseas? Existe apenas uma ligeira preocupação, coisa de nada, que me paralisa o corpo todo. Azia, dizem amigos. Azar, digo eu, quando leio na imprensa do dia notícia séria sobre a existência de "relógios biológicos" entre os machos. A coisa deixou de ser exclusividade feminina, avisam os cientistas da Califórnia. Encontra-se também nos homens, mais propriamente nos seus testículos. Ainda pensei encostar o ouvido, na busca quimérica do tic-tac fatal. Não foi preciso porque a ciência ensina tudo: quando um homem envelhece, os seus testículos envelhecem com ele. E a qualidade do esperma vai diminuindo de ano para ano. Consequências? Filho com deficiência grave, do nanismo à carreira política. Hora de repensar os meus patéticos egoísmos. Filho anão eu não me importo. Mas filho deputado seria um desgosto fatal para a pobre carcaça de um velho pai.

4 de Junho

Leio na "Spectator" inglesa entrevista longa com Christopher Lee. Gosto de Lee, Drácula da minha infância e ator altamente estimável. Como são os atores cabotinos que podem mudar de papel mas nunca, nunca, nunca cometem a suprema deselegância de mudar de personalidade. Como Cary Grant, Gene Hackman, Clint Eastwood. Ou mesmo Robert Mitchum, para quem só existiam dois tipos de representação: com cavalo e sem cavalo. É a velha oposição entre duas escolas clássicas: a primeira, apadrinhada por Diderot (e Noël Coward), para quem o mais importante era decorar as falas e não atropelar a mobília do palco. E a segunda, com os comediantes do "método" Stanislavski, que arruinaram o cinema contemporâneo com números de circo que me provocam urticária profunda. Sou incapaz de assistir a Marlon Brando nas telas sem me tornar agressivo com as pessoas que estão ao lado. James Dean, felizmente, morreu a tempo e não fez estragos. Mas Al Pacino é um caminhão desgovernado em todos os filmes onde aparece. Relembro um, inesquecível, com Al Pacino, cego, a dançar o tango e a berrar do princípio ao fim. "Perfume de Mulher", creio. A meio ainda perguntei se ele era mesmo cego ou era surdo. Fala mais baixo, vagabundo, gritei eu, em plena sala. Duas mocinhas entraram e, muito educadamente, pediram silêncio, ou saída. Saí imediatamente e ainda hoje não sei se o tom de Pacino foi diminuindo com o tempo. Suspeito que não.

Na entrevista, Christopher Lee confessa a sua ética como profissional: "O filme pode ser grotesco, mas a representação, nunca". Touché! Oscar Wilde disse o mesmo, por outras palavras, ao citar o charco onde vivemos e a necessidade imperiosa de olhar para cima, para o céu. É o meu lema. A vida pode ser o que é, mas isso não é desculpa para não pôr a melhor gravata.

6 de Junho

Quais as vantagens da sesta? Sou incapaz de viver sem. Acordo cedo e trabalho na cama das 9 às 12. Almoço (na cama). Levanto-me e levanto dia com um pulo só. Mas então sinto uma canseira e resolvo tirar uma sesta no sofá. Finalmente vingado: a ciência moderna não se debruça apenas sobre os meus testículos. Também se ocupa dos meus vícios privados. Segundo investigadores da Universidade de Manchester, é necessário respeitar os ritmos próprios do cérebro: depois das refeições, a nossa massa cinzenta desliga os interruptores para repôr os seus níveis de glucose. Por isso sentimos uma certa sonolência. E por isso devemos obedecer ao corpo e não à vida selvagem que se instalou em volta e que lentamente nos destrói. Claro que a descoberta não será aplaudida por fanáticos de todas as idades que gostam de trabalhar como cavalos de corrida e dormir três ou quatro horas com espírito triunfal. Aos loucos o que é dos loucos. Nós, os humanos, enfiados em escritórios durante 10 ou 12 ou 14 horas sem parar, deviamos exigir uma pequena cama individual que seria colocada no nosso gabinete por motivos de saúde. Isso permitiria que o trabalhador, depois do almoço, pudesse descalçar os sapatos e desligar do mundo durante trinta ou quarenta minutos. Se o patrão reclamasse muito, nada melhor do que oferecer-lhe uma cama também. Neste caso, de tamanho conjugal, para ser partilhada com a secretária.

9 de Junho

O Parlamento espanhol não tem dormido a sua "siesta", abolida oficialmente há uns meses por motivos de (saco de enjôo, por favor) "produtividade". Agora, os socialistas e os "verdes", depois de longas consultas com especialistas internacionais, pretendem estender os direitos "humanos" aos gorilas. Os espanhóis entendem que não existem grandes diferenças entre eles e os macacos. Como português, posso afirmar que "nuestros hermanos" têm alguma razão. O pior é calcular os efeitos da medida se ela for aprovada. Para os socialistas, isso obrigaria os macacos a serem libertados dos zôos e recolhidos em instituições do Estado (no zôo ficariam apenas os casos mais frágeis, mas só depois de audição em tribunal). Não tenciono moralizar ninguém e acredito que existem vantagens em reconhecer direitos aos bichos. Mas quando falamos em direitos, cuidado, falamos também em deveres. A começar pelos eventuais deveres conjugais, que acabarão por surgir quando o espanhol médio, cansado das mulheres domésticas, começar relação amorosa com um símio. Não sei se o Parlamento espanhol irá tolerar a idéia: o macaco, de véu e grinalda, pendurado no sino da Igreja, recusando-se à noite nupcional. Para evitar casos extremos, um conselho: o noivo deve substituir a flor na lapela por uma banana no bolso. E os convidados devem evitar atirar arroz, optando antes pelo amendoim. Nunca falha.

10 de Junho

Entrevista com o Dr. Muhammad Abdul Bari, alta autoridade da comunidade islâmica na Grã-Bretanha. No jornal "The Daily Telegraph", de Londres, o Dr. Bari afirma que o Islã é pacífico e que os ingleses deveriam aprender alguma coisa com as tradições muçulmanas. Por exemplo, as vantagens de "casamentos arranjados", em que a noiva e o noivo já conhecem o seu destino desde a hora do berço e, às vezes, casam ainda no berço. Confesso que, durante uns anos, marchei contra a idéia. Mas com trinta anos, e os testículos cientificamente em declínio, estou disposto a mudar de opinião. Um "casamento arranjado" tem as suas vantagens. Para começar, retira a pressão do tempo e a ilusão, criminosa, de que a próxima mulher será melhor do que a anterior. Qualquer homem aprende que as mulheres são sensivelmente iguais, excluindo questões técnicas como a histeria ou o penteado. Se o casamento é arranjado, não vale a pena embarcar em aventuras precárias. Ou, melhor, até vale: mas sabemos sempre que existe porto seguro, onde atracar o veleiro do nosso destino. Além do mais, tivessem os meus pais instituído essa prática e eu não teria sofrido metade e, mais ainda, esbanjado metade: em jantares desnecessários, em presentes desnecessários, em férias desnecessárias, com donzelas que se revelaram um desastre. Teria tido o tempo inteiro para ler, viajar, vadiar. E, na hora certa, regressaria a casa e, como diria Fernando Pessoa, casaria feliz com a filha da minha lavadeira.

12/06/2006


Agora leiam de novo se fazem favor.

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