Existe uma personagem em particular que permite perceber até que ponto o radicalismo de um filme como Holy Motors (2012) é doce. Refiro-me a Merde, protagonista desconcertante da curta-metragem de Leos Carax de 2008, que se entrega agora a uma demanda romântica e casta que tem por objecto de desejo a norte-americana Eva Mendes. Reconheço que esperava maior desconcerto deste filme, até porque o rótulo de “cineasta maldito” que se colou a Leos Carax após Les Amants du Pont-Neuf (1991), com a apoteose para os muitos desgostos que é Pola X (1999), com música de Scott Walker, fazia antever as mais inesperadas surpresas.
E Holy Motors começa mesmo bem. Com filas de espectadores catatónicos numa velha sala de cinema, e Carax, lui-même, a premir com a sua prótese metálica o botão que nos faz aceder a um universo paralelo ocupado por “avatares do desejo”, que se deslocam de limusine preenchendo dias e noites saltando de ficção em ficção. Merde está numa delas, e são todas investidas com o corpo plástico, bizarro e atlético de Denis Lavant, cúmplice de Carax desde a primeira hora. Passada a estranheza, ou integrada a estranheza, o filme encaminha-se para território emocionalmente familiar, querido até (como num circo intelectual, um circo crepuscular; e nunca, defeito meu, amei o circo) tão controlado como os primeiros filmes do francês. Uma provocação que quer ser amada. Carax terá conseguido o seu intento, ao passo que em parte perdi o meu filme. Hélas. Hélas.
Mostrado no âmbito do Lisbon & Estoril Film Festival.