8.20.2012

Recordações

























«Sou a criança que queria manter a ilusão e, ao mesmo tempo, o velho ciente de que tudo tem um preço, tudo tem fim.» (p. 225)

O narrador tem o nome de Corvo, por vestir sempre de negro. O único nome que J. Rentes de Carvalho lhe dá, que vemos mencionado uma única vez. Claro que não é por acaso e que isto reforça a empatia, decisiva, que estabelecemos com uma história que podia ter-se passado com o próprio autor. Não me ocupei a imaginar o protagonista de preto, pois para mim teve sempre o rosto de Rentes de Carvalho, um pouco como acontece quando lemos um livro que irá ser adaptado ao cinema e sabendo o nome dos actores logo as personagens nos surgem investidas da respectiva fisionomia.
A Amante Holandesa é um romance notável sobre aquilo que constitui a identidade de cada um, e sobre o modo como ficcioná-la pode ajudar a suportar a realidade do que somos. Existem dois amigos de infância que após o regresso da Holanda de um deles, onde estivera uma dúzia de anos, têm por hábito conversar longas horas em determinado lugar onde o mesmo pastoreia cabras (trata-se do Gato) e o outro espanta males da solidão, de um casamento sem amor, dois filhos a contas com a justiça na América, e de uma compulsão pedófila que se traduz, como o próprio confessa, na contemplação privada de álbuns com imagens de corpos jovens e bonitos.
Quando o primeiro se mata e o narrador recebe a visita da filha do Gato, que procura qualquer coisa de indefinido (um sentimento de pertença, talvez?) que pensa poder existir na terra do pai que não conheceu (Trás-os-Montes), o romance encaminha-se para a clarificação das vidas e naturezas reais de um e de outro, e da própria rapariga, Laura (24 anos mas de aparência mais nova ainda), na medida em que nela se prolonga a psicologia materna com igual capacidade de decepção. Mas ninguém está neste livro para ser julgado, e do leitor se espera igualmente que seja prudente a moralizar: todas as personagens são o que são e tratadas de forma isenta pela escrita elegante e essencial de J. Rentes de Carvalho.

«No íntimo, é verdade, eu poderia ter dado respostas iguais. Sexo, evidentemente. E aventura, cio, atracção. Para mim com o acréscimo da sua juventude, da beleza do seu corpo. Isso é o que ontem nos uniu. O que provavelmente nos separa, e a torna a ela distante e a mim melancólico, é a fantasia. A sua franqueza não quer enfeites, não conhece esperas nem precisa de sonhos. Sensibilidade e alma ficam de fora, assistem mas não participam, são o escudo que um dia poderá opor às recordações.» (p. 223)

Em defesa contra as recordações também se pode escrever livros, e livros estupendos como neste caso.

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