3.12.2012
A sangue frio
Dias depois, Vitorino mostrou-lhe algumas das muitas tatuagens que cobriam o seu corpo. Todas feitas na prisão, com tinta da china e uma seringa. Tornara-se um mestre do desenho corporal, e isso não só lhe trouxe alguma popularidade na cadeia, como rendeu uns valentes maços de tabaco em troca de pinturas feitas a outros reclusos. Na perna esquerda exibia orgulhosamente o desenho de uma foice e um martelo: das 213 tatuagens que lhe cobriam a pele era a sua preferida. Não soube explicar o que fazia uma cruz suástica ao lado do símbolo do comunismo, mas foi quando o técnico do IRS [Instituto de Reinserção Social] apontou para o seu ombro que ele mudou o tom de voz.
– Isso é verdade? – perguntou Rogério, apontando para uma inscrição onde dizia «não gosto de ninguém».
– Gosto da minha neta Joana – respondeu, com ar de quem não queria desenvolver o tema.
– E ela – insistiu o técnico –, gosta de si? É capaz de dizer o nome de alguém que goste de si?
Vitorino tentou esquivar-se à pergunta e manteve-se em silêncio. Como se estivesse de facto a tentar enumerar mentalmente as pessoas que podia dizer com certeza que gostavam dele. Desde as primeiras reuniões com Rogério que se sentia pouco confortável no diálogo, como se pisasse um terreno que não era o seu e que a qualquer momento podia desabar. Embora jovem, o técnico era capaz de conduzir a conversa a seu bel-prazer, encaminhando-a para onde mais lhe convinha, e acabando sempre por levantar as questões mais sensíveis. Raramente se deixava impressionar e era perspicaz ao ponto de romper o manto de vaidade com que Vitorino se protegia. O técnico sabia que era mais uma posição de trincheira do que outra coisa qualquer, e a postura que adoptara provocava em Vitorino uma estranha sensação de vulnerabilidade.
Não sendo senhor da situação, nas primeiras reuniões que teve com Rogério, Vitorino mostrou-se sempre um homem fechado. Não era o tipo de pessoa calada; falava até demais, mas raramente aprofundava. Preferia vangloriar-se das suas habilidades no mundo do crime do que falar da família, enaltecer um passado feito de violência que admitir um futuro mais pacífico, um emprego, planos e metas.
– Quando um homem não consegue ter quem goste dele tal como a natureza o criou, deve fazer-se tão temido até ser amado pelos seus inimigos. E acredite, doutor, inimigos é coisa que não me falta.
Lê-se como reportagem longa, e como um filme.
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