3.05.2012

A pequena paz














A primeira imagem de Brandon mostra-o deitado numa cama azul, tudo azul (celestial), lençóis e almofadas, a sua figura imóvel mas a expressão carregada já com a inquietude que o acompanhará daqui em diante. Shame dá o retrato, nos sentidos estético e psicológico, de um homem que não consegue parar e cuja pacificação, muito efémera, só é obtida com o orgasmo. Mais que um viciado em sexo, Brandon busca essencialmente a pequena paz que percorre o corpo e a mente pelo cansaço. O seu apartamento funciona como aquelas rodas onde animais engaiolados caminham sem sair do mesmo sítio, e as deslocações na cidade de Nova Iorque não funcionam de forma diferente. Os rituais de predador excluem o pensamento, e mais excluem os sentimentos. Cedo percebemos a solidão de Brandom e a sua incapacidade para se ligar emocionalmente a outros. Uma das melhores cenas do filme de Steve McQueen dá a ver uma conversa ao jantar entre Brandon e uma colega de trabalho, Marianne. O que impressiona é que não parece conversa de cinema, apesar de expôr a psicologia de Brandon. A coisa vagueia, há constantes interrupções motivadas pelo empregado do restaurante, hesitações de parte a parte, nervosismo à mistura, uma conversa que no limte da encenação se dá a observar como se tivesse sido captada no acto. É também com Marianne que Brandon tem um momento em que o afecto (dela) procura substituir-se ao sexo, e onde o corpo de Brandon "fracassa". Para na cena seguinte, no mesmo local, um quarto de hotel totalmente envidraçado que permite enorme exposição aos que se acercam dos seus limites, Brandon resgatar a confiança com uma profissional que dispensa sentimentos.
A irmã de Brandon, em visita por uns dias, é igualmente figura instável, no pólo oposto do protagonista. Alguém que se dá com facilidade e que sofre profundamente. Não há explicações no filme de Steve McQueen para Brandon e Sissy serem como são. Mas é pela presença dela que a fractura ontológica de Brandon se abrirá um pouco mais. O filme chama-se Shame e essa vergonha irá ser exteriorizada e explicitada como punição. Na última noite, quando Brandon vai ao encontro de várias formas de se castigar, entrando por domínios em que o prazer se confunde com violência e a violência com a busca de superação (algo como a purificação pelo "fogo"; é da descida aos infernos que se trata), Sissy porá também a vida em risco. A morte está inscrita no seu corpo de forma nada metafórica. Na manhã seguinte, Brandon procura contactar a irmã antecipando o pior cenário. O metro em que se desloca é forçado a parar pela polícia. Instante revelador de que Brandon não poderá mais fugir ou de que não poderá estar sempre em fuga. McQueen filma-o ainda instável na frente de superfícies que lhe deformam o corpo. Haverá a catarse emocional depois da visita à irmã no hospital, e o retomar da vida quotidiana. A mesma imagem, o mesmo metro, o encontro com uma mulher que víramos ser seguida por Brandon no começo do filme, mas algo na expressão dele não tem a energia do predador inicial, talvez resignação ou desistência. Brandon não é salvo a tempo da conclusão de Shame. Parece estar em processo de luto pela sua vergonha e pela sua mortalidade. A consciência da nossa finitude tem grande peso no facto de procurarmos os outros. Nada mais triste que morrer sozinho. Nada mais explícito em Shame que isto.

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