3.31.2012
3.30.2012
Countdown to Mark Lanegan (1)
É lembrar as American Recordings de Johnny Cash, meus caros. Aqui o original pertence a Will Oldham, mas veio Mark e comeu-o.
3.29.2012
Tal pai, tal filha
À Nos Amours (1983) filma um corpo que irradia sensualidade a que corresponde um rosto que diz nada. Uma rapariga que se dá a vários homens e que a nenhum se entrega. O único que parece incomodar-se é o namorado com quem a vemos de início. Carente e inseguro, pergunta-lhe se ela se aborrece na sua companhia? Separam-se ali e a rapariga vai ter com outros. Amar não é com ela e o filme de Pialat não dá explicação para este impedimento. Podemos querer vê-la no fracasso da relação entre os pais (Maurice Pialat interpreta o pai de Suzanne, interpretada por Sandrinne Bonnaire revelada neste filme) que se agridem constantemente. Naquela casa todos quatro (existe ainda o irmão mais velho) andam à bofetada. O pai é quem melhor percebe Suzanne mas não deixa de criticar o seu comportamento. A dada altura sai de casa e mais tarde faz uma visita breve por ocasião de um jantar dos filhos com amigos. É como se um tornado de cinismo irrompesse pela sala para denunciar a hipocrisia vigente. Pialat, personagem ou realizador, não propõe qualquer moral alternativa. O seu cinema é o das coisas que são como são. Sempre em estado de confrontação. O momento sempre no presente, brutal e em bruto. Há muito tempo que não visitava o meu mais estimado realizador europeu. Não é obra com que me apeteça confrontar assiduamente. Pialat filma-nos como somos. Há o gume do cinismo e um resto de demasiada realidade.
3.28.2012
Millôr Fernandes (1924-2012)
Countdown to Mark Lanegan (3)
Neste território ele é insuperável. Acaba por ser um momento quase escondido em Blues Funeral. Podemos lá passar sem dar conta. Liga-se mais a outras coisas que Lanegan fez.
3.27.2012
Countdown to Mark Lanegan (4)
Quiver Syndrome, das melhores músicas de Blues Funeral, onde não falta o coro "sympathy for the devil" nem nada.
Marcados para o resto da vida
O diário deixado pela prostituta que morre no início na sala de parto. As tatuagens visíveis de alto a baixo no corpo do motorista Nikolai (Viggo Mortensen). Os factos narrados em tempo presente pelo filme de David Cronenberg. Todo um emaranhado de histórias de violência que cercam os que delas fizeram parte ou que passam a fazê-lo ao se chegarem àquele universo: o da mafia de leste a operar em Londres. A violência está de algum modo centrada sobre as mulheres, suas principais vítimas, excepcionalmente espectadoras cúmplices como no caso das matriarcas russas que sabem do que se passa mas mantêm-se fora dos espaços onde os crimes têm lugar: becos, prostíbulos, baldios ou saunas. Aquelas que dão a vida são também quem maiores riscos corre de a perder. A principal tragédia de Eastern Promisses é o desbaratar do potencial da juventude, e aqui regressamos às passagens do diário que são lidas no decorrer do filme. A dado momento tudo o que é possível fazer passa por sobreviver de memórias até ao dia seguinte. Por isso é que o nascimento da criança que virá a ser adoptada pela enfermeira Anna (Naomi Watts) é tão significativo. E mais significativo o facto de para ela existir uma promessa diferente de futuro. Uma promessa gerada a ocidente.
3.26.2012
Da embriaguês pela leitura
«During this time a friendship was struck with Wilfrid Lawson, whom O'Toole would describe as an 'eccentric, perverse old bastard'. Lawson, famous for his part on stage as Eliza Doolittle's father in My Fair Lady, became O'Toole's acting mentor and was a notorious drunkard. In the days when plays went out live on television Lawson was muddling through his lines one night when he suddenly dried. Luckily his fellow actors were able to cover for him and when the scene ended Lawson breathed a huge sigh of relief and said, 'Well, I fair buggered that up, didn't I,' not realizing he was still on-air.
Lawson had also made the acquaintance of Burton, perhaps sensing that both men were at the vanguard of a new form of realism in acting and therefore represented the future. Most likely it was because they made for good drinking companions. During lunch in a pub Lawson ran into Burton and invited him to the matinee of a play he was appearing in at a nearby theatre. Since he wasn't in the early scenes Lawson offered to sit with Burton in the stalls. About 20 minutes after curtain up Burton started to get rather anxious that Lawson had not yet left to don his costume or make-up, instead just sitting there enthralled by the spectacle. Suddenly he tapped Burton's arm and said. 'You'll like this bit. This is where I come on.'
Lawson would meet quite a bizarre final curtain, suffering a fatal collapse while having a death mask made for a film.»
Histórias, histórias e mais histórias, um nunca acabar de histórias que não estão confinadas aos "quatro" maiorais, mas que têm sempre um dos "quatro" no epicentro da bebedeira. As 1001 noites mudadas para o Soho deram nisto. Um livro tóxico e hilariante.
Que viva México!
Kaurismäki fez já o filme em que eu mais gostava de ter entrado. Chama-se Ariel (1988) – em parte "filme de prisão" –, também nome do barco que no final levará o protagonista, a mulher e o filho dela, para melhores dias, no México, do que os vividos quando Taisto se mudou do interior para a grande cidade. Aki Kaurismäki tem alternado optimismo e pessimismo, humor e tragédia, quando se trata de filmar. Há nalgumas ocasiões a intuição de uma vida melhor além do arco-íris, seja lá qual for o exótico destino onde este se digne aparecer. O arco, aliás, começa por se desenhar no carácter exemplar das suas principais figuras, gente honesta que é vítima das circunstâncias geradas por outros. Não têm ninguém por elas, a não ser o poder ilusório do cinema. A mise-en-scène de Kaurismäki abre um horizonte de esperança para o que possa vir depois da última bobina. Os filmes desenrolam-se claramente do lado do cinema – na "kaurismakilândia" cultivada pela vasta minoria de "kaurismakiófilos" –, que valoriza o antigo e não perde tempo com as imagens modernas do mundo onde as razões do homem, e as suas fraquezas, não deixaram de ser as de sempre. O coração do finlandês é grande como o automóvel (uma banheira vintage tal qual as que Kaurismäki gosta de conduzir) herdado e mais tarde vendido por Taisto. O efeito cómico joga-se aliás na desproporção entre aquilo que a vida permite e o cinema torna possível. "Take the money and run" é apenas outra forma de escrever "bigger than life".
3.25.2012
Countdown to Mark Lanegan (6)
E a setlist dessa noite:
1. When Your Number Isn't Up
2. The Gravedigger's Song
3. Bleeding Muddy Water
4. Sleep With Me
5. Hit the City
6. Wedding Dress
7. Resurrection Song
8. Gray Goes Black
9. Crawlspace (dos Screaming Trees)
10. Quiver Syndrome
11. One Hundred Days
12. Creeping Coastline of Lights (cover dos Leaving Trains)
13. Riot in My House
14. Ode to Sad Disco
15. St. Louis Elegy
16. Wish You Well
17. Phantasmagoria Blues
18. Tiny Grain of Truth
Encore:
19. One Way Street
20. Harborview Hospital
21. Fix
22. Methamphetamine Blues
3.24.2012
3.23.2012
Viver para filmar ou filmar para viver
Isto não faz parte do documentário de mais de três horas que Robert B. Weide fez com Woody Allen, com quem passa aqui uns minutos bem humorados. O documentário não é melhor nem pior do que muitos outros exemplos desta arte em que os americanos há muito se especializaram, e que passa pela gestão de informação e testemunhos e o interesse do assunto ou sujeito. Quem gosta de Woody Allen vai sentir-se sobejamente recompensado.
3.22.2012
O mar no quarto de L.a
Coloque o mar no quarto dela
E demonstre o que é amar
Dedique esta canção a ela
E demonstre o que é o mar
Letra & música: Lucas Santana
3.20.2012
O Arto subtil
Comecei o dia com a mistura particular de ritmos brasileiros e art-rock em que Arto Lindsay se especializou – ele que é o mais nova-iorquino dos cariocas e o mais carioca dos nova-iorquinos – e que transportou para as discografias de David Byrne e Caetano Veloso, dois músicos a título de exemplo para percebermos até que ponto o Midas pode ficar na sombra daquilo em que toca. Não se encontram entrevistas recentes com Arto Lindsay e não se lhe conhecem discos em nome pessoal depois de Salt (2004). Vi-o no Porto, no Sá da Bandeira, nesse ano, e se bem recordo alguém referiu que aquele espaço tinha passado a exibir filmes "para adultos", o que nos pôs alerta em relação ao estado das cadeiras, contribuindo também para dar a nota decadente(-chique) que ia bem com o gingar suado sensual das composições de Arto, marcadas por um baixo de groove impecável e por electrónicas viscosas. O que se escutou e viu em 2004 seria tão moderno hoje como então. A mestiçagem é o futuro de tudo, não há volta a dar-lhe. Pena que Arto se tenha mais ou menos eclipsado para dentro dela. Como alguém que não quer ser encontrado, que se desloca contra a corrente, prosseguindo nos trabalhos de coadjuvante e produtor pelos quais será primeiramente recordado. O disco que começou o meu dia chama-se O Corpo Sutil (1995), tem no ano seguinte um gémeo em Sol na Cara, de Vinicius Cantuária (o mesmo som, músicos comuns, a produção de Lindsay, versões muito próximas de Este Seu Olhar, de Tom Jobim, em ambos), e uma canção muito especial que em poucos versos traduz "sutilmente" o impuro Arto: No Meu Sotaque, já a seguir.
3.19.2012
3.18.2012
"Tabu" a caminho!
3.17.2012
3.16.2012
Aja (1977)
A edição remasterizada de Aja deixa mais clara a sofisticação musical de um disco que parece produto de uma pequena orquestra constituída pelos instrumentos tradicionais de um projecto pop-rock. Existe uma tal depuração que escutamos tudo. O som é quente, descontraído e aberto. Cada pincelada conta. Os temas são longos. Canções que baralham a estrutura convencional e que instalam primeiro o groove no equilibrio difícil que sugere o prazer de quem toca aos ouvidos de quem recebe esta música com igual prazer. Aja é daqueles objectos que faz de qualquer um um espírito musicalmente mais esclarecido. Uma lição do tempo aplicado à música que corre sem darmos conta do tempo que passa. Um enigma cristalino.
3.15.2012
3.14.2012
Sem pretexto
Cavalinho
Cavalo de Guerra (War Horse) é uma prova de obstáculos e o obstáculo é sempre o mesmo. Spielberg a estender um olhar de criança a todos os momentos do filme: seja a beleza do animal castanho que corre livremente pelas planícies verdejantes da Irlanda, ou os horrores das trincheiras da Primeira Grande Guerra. Quando decidimos ver um filme cuja idade mental se situa nos 10/11 anos, é bom que nos façamos acompanhar de público jovem, pois deste modo parte do envolvimento que ele ou eles sentirão passa para nós como recuperação ilusória e exterior da idade em que ao cinema pedíamos isto: sentimentos bonitos e imagens condizentes a enquadrar. O prazer relativo ou o aborrecimento acumulado tem origem na capacidade de fintar ou não este equívoco. Isto é um filme de família, género em que é natural condescender quando é sobretudo para eles e não por nós que vamos ao cinema.
3.13.2012
Now's the time
Não há filme que eu mais quisesse ver neste momento que este. Os ingredientes chamam muito por mim e sem excepção. Saber que Michael Mann teve participação não creditada no argumento, e que mais tarde decalcou deste material a personagem de Robert De Niro em Heat, é bom de mais. Assim me chegue por boas mãos da América. Coisas que apenas se pedem a amigos.
O pai faz anos
Hoje é o aniversário do meu pai. Completa a idade que Ray Cash tinha, 72 anos, quando o filho actou no Madison Square Garden. Apercebi-me da coincidência esta manhã e queria trazer para aqui um excerto do concerto. Na impossibilidade de termos o MSG, e do mesmo ano, Cash na prisão de San Quentin.
3.12.2012
Tributo ao Japão e aos japoneses
Não consegui encontrar o vídeo da reportagem que vi com alguns sobreviventes do tsunami no Japão, que seguiram com as suas vidas tendo perdido famílias inteiras. Registei em particular a conversa com um velho pescador que ficou sozinho e encontrou conforto junto dos jovens que se dedicam a apanha de algas marinhas. O homem recordava o desaparecimento da mulher (e da mãe?), mantendo uma postura de grande dignidade ao mesmo tempo que o seu discurso falava da dor maior de perder aqueles que amamos. O Japão é sem dúvida um país diferente e um acontecimento como a tragédia de Fukushima, fez ontem um ano, reduz quase tudo à insignificância. A minha discreta vénia.
O amor único
Em mais uma louvável iniciativa, a Gulbenkian deu a ver gratuitamente este fim-de-semana um conjunto de filmes portugueses apoiados pela instituição. Vi dois de entre os possíveis, mas só me apetece destacar um. E o Tempo Passa (2011) de Alberto Seixas Santos, que não terá ido além do par de semanas em exibição numa só sala de Lisboa. É um filme lúcido e obra de um resistente. Coloca-se do lado do cinema enquanto arte, e contra a televisão enquanto máquina produtora de esquecimento e solidão. É interessante tentar perceber, e exercício nada simples num primeiro visionamento, como Seixas Santos filma de modos diferentes o que está do lado da arte, ou do lado do pronto a consumir, ou ainda do lado mais frágil que é o da vida e suas memórias (dele realizador). Formalismos à parte, a diferença fundamental diz respeito aos riscos corridos. E o Tempo Passa é obra de risco, que se não os ganha a todos, ganha-nos a nós que nos descobrimos desarmados perante o seu grau de exposição: encontro de solidões respeitador das intimidades envolvidas. Cinema que não se confunde com outra coisa qualquer, infelizmente tratado com indiferença. Mas não pela Gulbenkian. Não por esta sessão que para o filme resgatou uma pontual e simbólica dignidade.
Música para tempos incertos
A sangue frio
Dias depois, Vitorino mostrou-lhe algumas das muitas tatuagens que cobriam o seu corpo. Todas feitas na prisão, com tinta da china e uma seringa. Tornara-se um mestre do desenho corporal, e isso não só lhe trouxe alguma popularidade na cadeia, como rendeu uns valentes maços de tabaco em troca de pinturas feitas a outros reclusos. Na perna esquerda exibia orgulhosamente o desenho de uma foice e um martelo: das 213 tatuagens que lhe cobriam a pele era a sua preferida. Não soube explicar o que fazia uma cruz suástica ao lado do símbolo do comunismo, mas foi quando o técnico do IRS [Instituto de Reinserção Social] apontou para o seu ombro que ele mudou o tom de voz.
– Isso é verdade? – perguntou Rogério, apontando para uma inscrição onde dizia «não gosto de ninguém».
– Gosto da minha neta Joana – respondeu, com ar de quem não queria desenvolver o tema.
– E ela – insistiu o técnico –, gosta de si? É capaz de dizer o nome de alguém que goste de si?
Vitorino tentou esquivar-se à pergunta e manteve-se em silêncio. Como se estivesse de facto a tentar enumerar mentalmente as pessoas que podia dizer com certeza que gostavam dele. Desde as primeiras reuniões com Rogério que se sentia pouco confortável no diálogo, como se pisasse um terreno que não era o seu e que a qualquer momento podia desabar. Embora jovem, o técnico era capaz de conduzir a conversa a seu bel-prazer, encaminhando-a para onde mais lhe convinha, e acabando sempre por levantar as questões mais sensíveis. Raramente se deixava impressionar e era perspicaz ao ponto de romper o manto de vaidade com que Vitorino se protegia. O técnico sabia que era mais uma posição de trincheira do que outra coisa qualquer, e a postura que adoptara provocava em Vitorino uma estranha sensação de vulnerabilidade.
Não sendo senhor da situação, nas primeiras reuniões que teve com Rogério, Vitorino mostrou-se sempre um homem fechado. Não era o tipo de pessoa calada; falava até demais, mas raramente aprofundava. Preferia vangloriar-se das suas habilidades no mundo do crime do que falar da família, enaltecer um passado feito de violência que admitir um futuro mais pacífico, um emprego, planos e metas.
– Quando um homem não consegue ter quem goste dele tal como a natureza o criou, deve fazer-se tão temido até ser amado pelos seus inimigos. E acredite, doutor, inimigos é coisa que não me falta.
Lê-se como reportagem longa, e como um filme.
3.09.2012
Grow up and grow old
Parece que se Wes Anderson continuar a fazer o género de filmes que tem feito, o direito a ser chamado de representante do jovem cinema americano não se lhe despegará mais da pele. Moonrise Kingdom vai abrir a próxima edição de Cannes e os disparates repetem-se. É o mesmo que continuar a classificar Camané como uma das principais vozes do novo fado. Opinião preguiçosa que no que respeita ao realizador esquece o óbvio. Anderson é um nostálgico pelo tempo em que o cinema representava a aventura dentro e fora da tela. Um pouco como aquilo que suspeito ser o resultado de Tabu, de Miguel Gomes, admirador da obra do norte-americano e cujos filmes foram apodados de regressivos. Como se evocar a infância da arte não fosse a melancólica consciência do paraíso perdido. Os mais novos não pensam assim. Os que já nasceram velhos é que sim.
3.08.2012
3.07.2012
O inverso do bourbon
God bless that hat
Para onde quer que olhemos não se vê mais esta grandeza de sentimentos no cinema (mudou-se). Que saudades. No começo do episódio 9, Raylan Givens encontra-se temporariamente suspenso e aguarda a chegada da ex-mulher, Winona, num bar. Uns tipos sentados mais ao fundo no balcão falam em tom grosseiro da mulher de um deles. Raylan pede-lhes que baixem o tom de voz e a coisa acaba ao murro. Dois bêbados contra um, Raylan seriamente esmurrado, prostrado no chão a sangrar.
O actual marido de Winona está em apuros. Envolveu-se com gente pouco recomendável num negócio imobiliário que ficou estagnado. Ou lhes devolve a massa ou paga com a vida. A saúde da ex-mulher de Raylan corre igual perigo. Winona pede que Raylan os ajude e é aqui que se atinge o sublime: um sublime à Minnelli, diria eu. O momento em que Raylan não apenas procura convencer o marido de Winona em desespero a não pôr termo à vida, como se prontifica a ajudá-lo a sair daquela enrascada. Faz tudo isto de cabeça ao ar, uma vez que o seu tão estimado chapéu ficou na posse de um dos indivíduos que lhe deram o enxugo de pancada. Escusado seria de dizer que Raylan vai recuperar o chapeú no final do episódio. Como se perante a dignidade do que acabara de fazer não fosse possível negar-lhe o direito.
Justified é uma série tremenda porque se mantém do lado dos grandes gestos. E como diz um grande amigo, a arte serve para nos completar enquanto humanos. Creio que Raylan não estará completo enquanto não recuperar o amor de Winona, e a partir de agora aquele chapéu simboliza essa falta. Até mais ver.
3.06.2012
Rever a história
De quando os Arctic Monkeys se fizeram homenzinhos, na companhia de Josh Homme e Alain Johannes. Saiu um Humbug desta história, que vou passar em revista o resto da tarde. (fotos de Justin Smith; a história contada aqui)
Harry Escott (n. 1976)
3.05.2012
Memórias de um chapéu
O que em Miami dá nas vistas (se é que alguma coisa salta à vista em Miami), no estado do Kentucky passa despercebido. É de onde a série parte e para onde rapidamente se dirige. Claro que um produto como Justified se destina ao público que se porá a mesma questão que eu: mas é o chapéu que faz o homem ou o homem a fazer o chapéu? Os inimigos de Raylan Givens podem nem prestar atenção ao adereço. Há até uma cena em que um diz para o outro "... estás a ver ali o tipo de chapéu?", ao que o outro responde "... qual tipo, o mais alto?", e o primeiro acrescenta "... o do chapéu!". Acontece que aquele chapéu, onde não são vistos outros, individualiza a personagem do U.S. Marshal Givens, trazendo a figura do caubói para os tempos actuais, não desvirtuando a aura de um passado longínquo onde cada um aplicava os seus parâmetros de justiça, e uns eram mais justos que outros. Entre a personagem que Timothy Olyphant interpretava em Deadwood e esta de Justified, as semelhanças são superiores às diferenças. Chama-se a isto capitalizar o património em várias direcções e diferentes sentidos. Algo que depende de muito mais que o uso de chapéu.
A pequena paz
A primeira imagem de Brandon mostra-o deitado numa cama azul, tudo azul (celestial), lençóis e almofadas, a sua figura imóvel mas a expressão carregada já com a inquietude que o acompanhará daqui em diante. Shame dá o retrato, nos sentidos estético e psicológico, de um homem que não consegue parar e cuja pacificação, muito efémera, só é obtida com o orgasmo. Mais que um viciado em sexo, Brandon busca essencialmente a pequena paz que percorre o corpo e a mente pelo cansaço. O seu apartamento funciona como aquelas rodas onde animais engaiolados caminham sem sair do mesmo sítio, e as deslocações na cidade de Nova Iorque não funcionam de forma diferente. Os rituais de predador excluem o pensamento, e mais excluem os sentimentos. Cedo percebemos a solidão de Brandom e a sua incapacidade para se ligar emocionalmente a outros. Uma das melhores cenas do filme de Steve McQueen dá a ver uma conversa ao jantar entre Brandon e uma colega de trabalho, Marianne. O que impressiona é que não parece conversa de cinema, apesar de expôr a psicologia de Brandon. A coisa vagueia, há constantes interrupções motivadas pelo empregado do restaurante, hesitações de parte a parte, nervosismo à mistura, uma conversa que no limte da encenação se dá a observar como se tivesse sido captada no acto. É também com Marianne que Brandon tem um momento em que o afecto (dela) procura substituir-se ao sexo, e onde o corpo de Brandon "fracassa". Para na cena seguinte, no mesmo local, um quarto de hotel totalmente envidraçado que permite enorme exposição aos que se acercam dos seus limites, Brandon resgatar a confiança com uma profissional que dispensa sentimentos.
A irmã de Brandon, em visita por uns dias, é igualmente figura instável, no pólo oposto do protagonista. Alguém que se dá com facilidade e que sofre profundamente. Não há explicações no filme de Steve McQueen para Brandon e Sissy serem como são. Mas é pela presença dela que a fractura ontológica de Brandon se abrirá um pouco mais. O filme chama-se Shame e essa vergonha irá ser exteriorizada e explicitada como punição. Na última noite, quando Brandon vai ao encontro de várias formas de se castigar, entrando por domínios em que o prazer se confunde com violência e a violência com a busca de superação (algo como a purificação pelo "fogo"; é da descida aos infernos que se trata), Sissy porá também a vida em risco. A morte está inscrita no seu corpo de forma nada metafórica. Na manhã seguinte, Brandon procura contactar a irmã antecipando o pior cenário. O metro em que se desloca é forçado a parar pela polícia. Instante revelador de que Brandon não poderá mais fugir ou de que não poderá estar sempre em fuga. McQueen filma-o ainda instável na frente de superfícies que lhe deformam o corpo. Haverá a catarse emocional depois da visita à irmã no hospital, e o retomar da vida quotidiana. A mesma imagem, o mesmo metro, o encontro com uma mulher que víramos ser seguida por Brandon no começo do filme, mas algo na expressão dele não tem a energia do predador inicial, talvez resignação ou desistência. Brandon não é salvo a tempo da conclusão de Shame. Parece estar em processo de luto pela sua vergonha e pela sua mortalidade. A consciência da nossa finitude tem grande peso no facto de procurarmos os outros. Nada mais triste que morrer sozinho. Nada mais explícito em Shame que isto.
Sinceramente
... sincerely, L. Cohen
31 músicas de Leonard Cohen escolhidas pelo próprio. Não importa saber até que ponto são autobiográficas; é mais forte a impressão de que Cohen concebe a vida no geral, e o amor no particular, como uma espécie de sacerdócio que terá transferido em parte, pelo menos, para o ofício de escrever canções. Em algumas coloca-se no papel de observador de factos e vidas alheias. Tudo bastante reflectido, mas se as encararmos olhos nos olhos e de coração aberto até a poesia cifrada mostra um caminho que já fizemos ou um percurso que estamos sempre a repetir.
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