4.22.2008
Um sentido de dignidade
Ao rever A Raínha, de Stephen Frears, a questão fulcral de novo se impôs. Como é possível que a monarca do filme mostre maior comoção perante a morte do veado "imperial", às mãos de um vulgar caçador desportivo de fim-de-semana, do que ao receber a notícia do desastre e consequente morte de Diana? Tudo é questão de dignidade, valor que no filme de Frears transcende as espécies. E que é sobretudo sentido como que numa inspiração: um animal, uma situação, uma paisagem, um rosto podem traduzir para nós um sentido de dignidade que experimentamos, que nos inspira, que nos contagia como se dele fizéssemos parte. O veado de 14 pontas (sinónimo da sua idade avançada, tal como a da Raínha Isabel II) terá tido uma existência mais digna do que a sua morte: imaginando que o homem que o abateu não terá sido sensível às ressonâncias quase mitológicas que um espécime daquela natureza encerra. Já a ex-princesa Diana de Gales acabou sendo vítima da volúpia mediática que alimentou a sua popularidade universal: a ela assentaria com alguma justiça a expressão "live by the press, die by the press". Parece-me finalmente que o filme de Stephen Frears, de uma aparente neutralidade que não deixa de surpreender, se distancia da hipócrisia cosmética dos media para se colocar discretamente do lado dos valores mais antigos, tal como representados pela figura da raínha, que vive rodeada por gente do seu meio que não é alheia a fraquezas (o Príncipe Carlos) e preconceitos (o Príncipe Filipe). Coube a Stephen Frears, partindo do excelente guião de Peter Morgan, traduzir o conflito de valores e de interesses à escala de um país, evitando cair no retrato demagógico. E, na minha opinião, conseguiu-o.
Um diálogo da raínha, no filme: "Hoje em dia as pessoas pedem glamour, lágrimas, o grande espectáculo. E não sou boa a dar-lhes isso, nunca fui. Prefiro guardar os sentimentos para mim. (...) Primeiro está o dever, nós vimos depois."
Uma longa entrevista com Stephen Frears, na Slate, a propósito do filme (a imagem corresponde à reprodução do quadro de Edwin Landseer,The Monarch of the Glen, citado nesta peça).
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