8.28.2007

O senhor extraterrestre












A música, estava certo, só podia ser excelente. Imprime uma marca de realismo onírico ao filme de Araki que é das coisas mais comoventes que o filme tem. Um amigo objectava à saída em relação à cena em que Neil e Wendy estão num drive-in vazio fantasiando sobre o filme das suas vidas até aí, quando de repente - sem que nada antes o fizesse prever e a par com o regresso da banda-sonora de Harold Budd e Robin Guthrie - começa a nevar... Pois é exactamente este tipo de liberdades poéticas, assim como a não demonização da figura do pedófilo (que um dos rapazes recalca sob a história do rapto levado a cabo por alienígenas que explicaria o abuso de que foi alvo), que traduzem a originalidade e a grandeza humana do filme de Araki: um pouco à semelhança do que sucedia com Little Children, de Todd Field, quanto a mim mais desequilibrado mas igualmente estimulante na abordagem às imperfeições dos vários personagens, todos demasiadamente frágeis.
Regressando a Mysterious Skin, de Greg Araki, a sensação que fica é de que participa da energia visual e da riqueza dramática mais comum hoje em dia nas melhores séries televisivas (é de onde provêm os principais jovens actores deste filme), onde a sensibilidade gay se encontra cada vez mais presente (de Six Feet Under a Angels in America), facto que só merece ser saudado. A afirmação da diferença liberta a meu ver a diversidade das histórias, mais complexas, todas as tendências e géneros incluídos, integrando dilemas e perplexidades em completa sintonia com a deriva dos tempos actuais: a deriva individualista onde o homem procura encontrar-se no vasto campo de possibilidades reais ou virtuais que tem na frente, o que leva à constituição de cenários alternativos que o fazem sentir melhor integrado pelo carácter de excepção daqueles. No mundo presente cercado de imagens (por todos os lados), de hedonismo e de constante escapismo como é o nosso, é talvez mais justo que se recupere a representação de molestadores como extraterrestres do que como a enésima variação do cavernícula sórdido do bairro. Ainda para mais as vítimas tratando-se aqui de crianças (relembar que Pascal Bruckner nos caracterizou como "tentados pela inocência", e que Anthony O'Hear nos classificou de "crianças de Platão"), como todas, plenas de imaginação e ainda totalmente livres nas associações que estabelecem para os sentidos da vida. Que Greg Araki filme isso tudo sem recusar a ideia de que a partilha da sexualidade é experiência que não deve ser antecipada na vida de nenhum ser humano - com o risco que acarreta de acidentar o processo de maturação emocional do indivíduo -, é a confirmação de total maturidade de um cineasta que soube colocar o virtuosismo formal e a riqueza visual do seu cinema ao serviço de histórias que nos fazem pertencer a esse todo infinitamente complexo constituído por pessoas como nós: insistindo eu sobre o que à nossa existência confere a progressiva dependência de gadgets (e da comunicação não presencial), sugerindo ficções de nós próprios. É como se Araki dissesse que nos tornámos todos um pouco mais extraterrestres e há que aprender a aceitá-lo e, como tal, a partilhá-lo. Mysterious Skin não é cinematograficamente um OVNI tão diferente de nós. Antes pelo contrário.

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