5.18.2007

3xHHH (dia segundo)














Quanto mais particular mais universal. Genericamente, podia ser esta a chave de leitura do efeito de fortíssima identificação que estabelecemos com as memórias feitas cinema nos filmes mais (auto)biográficos de Hou Hsiao-hsien. O segundo dia da retrospectiva deu a conhecer dois exemplos disso mesmo: Um Verão com o Avô parte da reconstituição das recordações de infância da argumentista Chu Tien-wen e fala de um Verão em particular, no qual duas crianças – Ting-Ting e Tung-Tung – deslocam-se à aldeia dos avós pelo período em que a mãe deles é mantida hospitalizada. O filme é belíssimo, de uma simplicidade de processos apenas aparente, que constantemente nos desarma a vista e o coração; de uma grandeza humana no modo de olhar, que confere dignidade a todos os personagens; de uma capacidade rara para criar empatia com o mundo da infância (que não é infantilizado, mas olhado de igual para igual), partindo ainda dessa espécie de harmonia dos elementos para observar a esfera dos adultos através da percepção das crianças. Um Verão com o Avô é um filme que inscreve a noção da morte na vida dos dois irmãos, Ting-Ting (a menina) e Tung-Tung (o rapaz). Do amigo que se mete rio abaixo para ir buscar a sua vaca que julga perdida, ao episódio do motorista apedrejado pelos assaltantes, passando ainda pela figura da louca da aldeia que aborta após tombar de uma árvore ou pela sequência do pássaro morto por um foguete de festa, mas principalmente pela incerteza em relação ao estado de saúde da mãe, o filme de Hou Hsiao-hsien participa da vitalidade do grupo de crianças que fazem do seu tempo de lazer uma incessante aventura, guardando uma zona de sombra que os cerca, assim como também eles são envolvidos pelo universo dos adultos.
Tempo Para Viver e Tempo Para Morrer é igualmente elegíaco, embora bastante mais sombrio. Projecta-se, uma vez mais, como em Os Rapazes de Fengkuei, nas memórias de (infância e) juventude de Hou Hsiao-hsien e é em particular dedicado ao pai do realizador – aquele que guardava distância dos filhos para os proteger, afinal, da tuberculose que aos poucos veio a matá-lo. Hou Hsiao-hsien regista esses momentos da sua vida com extremo pudor, uma rara sensibilidade para fazer uso das elipses que assinalam a passagem do tempo, deixando-nos a sensação de que a adolescência é uma espécie de beco sem saída onde a existência a cada dia se repete e o sentido demora a aplacar a angústia de viver. Hou Hsiao-hsien pontua Tempo Para Viver e Tempo Para Morrer com o desaparecimento de seus pais (ela sobreviver-lhe-á mas por poucos anos) e com os sacrifícios a que a sua família se sujeitou para manter-se unida, mas fá-lo sem incorrer no mínimo facilitismo dramatúrgico. Este é um filme de uma densidade quase literária, constituído substancialmente por planos sequência fixos que nos introduzem na vida na pequena povoação para onde a família de Hou Hsiao-hsien se mudou, quarenta dias após ele ter nascido, para benefício da saúde e da vida profissional de seu pai. Tempo Para Viver e Tempo Para Morrer será pelo seu lado fortemente autobiográfico, o filme mais pessoal do chinês. Propõe que nos orientemos pelas suas memórias (também à luz da nossa própria história), em vez de nos conduzir ao longo das mesmas. A evocação é tão preenchida em cada detalhe que permite que nos iludamos com a neutralidade do ponto de vista. Como se Hou Hsiao-hsien, ao recuperar as recordações do passado, permitisse que este tornasse de novo a existir e tão liberto como da primeira vez. Num filme de Hou Hsiao-hsien nós estamos sempre lá (no seu espaço geográfico e no seu tempo histórico), ou então não estamos de todo ali. (ambos 4 estrelas)

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